GLAUCOMATOPÉIA [#6]

[1] Numa teoria do soneto que publiquei em apêndice ao livro GELÉIA DE ROCOCÓ, propus um "Decálogo do decassílabo" cujos "mandamentos" privilegiavam o verso heróico, usado na poesia mais monumental da língua, como OS LUSÍADAS e o Hino Nacional. Por esse modelo, o deca ideal seria um pentâmetro jâmbico dividido em três pés, um jambo e dois dijambos. Em outras palavras, além da cesura imóvel na sexta sílaba, o deca teria uma pré-cesura na segunda. Acontece que na prática essa pré-cesura não é imóvel e às vezes o poeta a empurra para a terceira sílaba, quando os três pés do deca contam dois anapestos e um dijambo. Tudo isso é tecnicismo de esticólogo, nomenclatura que a poesia popular não emprega.

[2] Mesmo sem teorizar, o glosador pratica tais mobilidades intuitivamente. Em geral a quadradécima se constrói na redondilha maior, mesmo padrão da trova mais comum tipo "batatinha quando nasce". Mas alguns glosadores resolvem se destacar em patamares mais ambiciosos e trocam a redondilha pelo deca. Não o deca camoniano, aquele acentuado na segunda, mas o deca "alternativo", acentuado na terceira. Como a sexta não muda, esse deca do glosismo acaba se fixando na terceira, sexta e décima sílabas. Para diferenciá-lo do heróico tradicional, batizaram-no de "martelo agalopado". O nome deriva dum tal Pedro Martelo, professor de literatura na universidade de Bolonha no século XVII, mas no nosso Nordeste quem o introduziu foi o violeiro paraibano Silvino Pirauá Lima.

[3] Para facilitar a compreensão, digamos que o heróico tradicional tenha o seguinte "mnemonema" (termo que proponho como ferramenta): "cobriu, descobrirá, descobrirá", onde o "iu" marca o pé jâmbico e os "á" marcam os dijâmbicos, como em "As ARmas e os baRÕES assinaLAdos" ou em "OuVIram do IpiRANga as margens PLÁcidas". No martelo o mnemonema seria "galopou, galopou, galopará", onde os "ou" marcam os anapestos e o "á" perfaz o deca, como em "Alma MInha genTIL que te parTISte".

[4] Agora um caso típico de martelo agalopado, citado por Ariano Suassuna como sendo dum tal Lira Flores (talvez pseudônimo), que não é glosa mas serve para alardear a habilidade do poeta num gênero considerado a "via-crucis" dos fracos repentistas, mais próprio de obra escrita que das "pelejas" cantadas, devido à complexidade formal:

Quando as tripas da terra mal se agitam
E os metais derretidos se confundem
E os escuros diamantes que se fundem
Das crateras ao ar se precipitam,
As vulcânicas ondas que vomitam
Grossas bagas de ferro incendiado
Em redor deixam tudo sepultado!
Só com o som da viola que me ajuda,
Treme o sol, treme a terra, o tempo muda,
Eu cantando martelo agalopado!
[5] Ainda nesse formato de "manifesto" onde o martelo é explicitamente proposto no verso final, exercitei o gênero, para começar, recuperando o tema da infância ultrajada pelo abuso sexual, tema que eu já esgotara em soneto e na própria quadradécima. Seguem dois exemplos. Voltarei ao martelo, mas da próxima vez para usá-lo como glosa de motes pinçados de sonetos de Bocage, coisa que ninguém fez até aqui. Até lá!
Diferente que sou, de nenhum grupo
Tomei parte, e a turminha, aproveitando,
Me encurrala na moita e monta! É quando
Lambo pés, mijo bebo, bimbas chupo!
Desde então, deste assunto oral me ocupo:
"Lé com lé, cré com cré", diz o ditado;
"Antes só do que mal acompanhado",
Diz um outro, e, na falta de parceiro,
Gloso e gozo, abraçado ao travesseiro,
No vai-vem dum martelo agalopado!   [8.81]
Ninguém usa o martelo que nem eu,
Martelando o dedão largo, na ponta
Do pé chato do mano que me monta:
Sangue bom, da linhagem do plebeu,
Que Bocage e Rabelo jamais leu,
Mas que tira casquinha dum coitado
Com requinte capaz de ser cantado!
Quem foi rei nunca perde a majestade,
E eu que sou, também, súdito de Sade,
Virei rei do martelo agalopado!   [8.82]
GLAUCO MATTOSO
poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados no sítio oficial:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso