GLAUCOMATOPÉIA [#7]

[1] A glosa de Moysés Sesyom com que ilustrei o terceiro capítulo desta série provocou o maior buchicho lá pras bandas do Ceará. Alguns cantadores e cordelistas, talvez esquecidos da lenda sesyomista, acharam a glosa espúria por exceder os limites injuriosos determinados pelo mote. Segundo a doutrina a mim reportada por Soares Feitosa (editor do JORNAL DE POESIA*), um poeta só poderia ofender a mãe e a avó do interlocutor, nunca a filha ou a neta. Bráulio Tavares, consultado, desfez o mal-entendido, lembrando que o discutível ponto de honra limítrofe entre o permitido para ascendentes e o proibido para descendentes só faria sentido junto a cantadores que pelejam ao vivo, cara a cara, quando cabe algum escrúpulo nas provocações pessoais. O glosador está livre de qualquer restrição por se achar em posição bem diversa do repentista que duela: na glosa o "adversário" é o hipotético proponente do mote, um destinatário imaginário que pode ser qualquer leitor ou ouvinte e ao mesmo tempo não é ninguém, estando sujeito, portanto, aos mais baixos xingamentos, até porque um mote desbocado exige resposta à altura (ou à baixaria) sob pena de o glosador revelar-se inepto.

[2] Esse negócio de "mãe pode xingar; filha não", por mais autêntico que seja e por mais esdrúxulo que pareça, não me diz respeito, já que poso de baitola enxovalhado e não de macho zeloso. Eles são cabramachistas, eles que se entendam. Mas, entendido que sou (inclusive nos desbocamentos ilimitados), a coisa me toca num ponto fecal, ou seja, a tendência a cagar regra que há por detrás do ofício poético, seja ele popular ou acadêmico. Cada autor se julga professor de seu gênero e porta-voz de sua geração, cada gênero se propõe como superior aos demais (quer por ser anterior, quer por ser posterior, conforme seja a postura tradicionalista ou vanguardista) e cada geração se propõe como eleita perante a História para cumprir sua missão de difundir o "verdadeiro" conceito de poesia. Acho que em nenhum terreno a cagação de regra tem mais razão de ser que no cordelismo e no glosismo, onde o trunfo é o blefe, o arsenal é a bazófia e quanto mais fanfarrão mais prestígio ganha um poeta.

[3] Eis por que escolhi, desta vez, um mote que brinca justamente com a faceta mais ridícula do autoritarismo, aquela mania de interferir até nas leis mais naturais, como as necessidades fisiológicas. Segue-se ao mote a glosa deixada pelo potiguar Antônio de Oliveira Souto, discípulo de Sesyom:

NÃO VALE MIJAR MAIS CEDO
NEM CAGAR FORA DE HORA.

Comigo não tem segredo,
Vou dizer com segurança:
Se agüentem na poupança!
Não vale mijar mais cedo!
Do pau não se tira o sebo,
Pois se tirar não melhora!
Quem não gosta vá embora,
Que falta não vai fazer!
Não se sai nem pra foder,
Nem cagar fora de hora!


[4] Bráulio Tavares não deixou por menos e me enviou duas (uma em quadradécima, outra em nonadécima), dando-se ao luxo de inverter a cagada e a mijada pra mostrar que nada é inflexível neste departamento:

É programa ou arremedo
O "Big Brother" da Globo?
Neguinho é feito de bobo:
NÃO VALE CAGAR MAIS CEDO,
Ninguém pode dar o dedo,
Falar merda, cuspir fora,
Nem fuder com quem namora,
Não pode sequer peidar
Na hora que vai ao ar,
NEM MIJAR FORA DE HORA!

Lá em casa quando tem
Uma roda de buraco,
O sujeito que for fraco
Diga logo que não vem!
Começou, não sai ninguém!
Ninguém vai peidar lá fora!
Se a cagada vem agora,
Segure a merda com o dedo!
NÃO VALE CAGAR MAIS CEDO
NEM MIJAR FORA DE HORA!

[5] Obcecado que sou pela reminiscência dos abusos que sofri quando garoto, não ousei desobedecer minha própria regra ao tematizar a glosa para aquele mote. Assim, meus curradores mirins, que na época eram em média dois anos mais velhos que os dez aninhos de mal enxergada idade a me pesarem no costado, se investiram da autoridade enquanto eu me despia do pudor:
Os moleques, no arvoredo,
Me puseram de joelho.
Comandava o mais fedelho:
"Não vale mijar mais cedo!"
Chupei de tudo, até dedo
Dos que tinham pé de fora!
Por fim, minha boca escora
O mijo de toda a gangue,
Pois não quero perder sangue
Nem cagar fora de hora! [8.57]
*www.secrel.com.br/jpoesia
GLAUCO MATTOSO
poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados no sítio oficial:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso