GLAUCOMATOPÉIA [#8]

[1] Normalmente a glosa fescenina parte de um mote explicitamente sacana de per si, como aqueles já trabalhados nesta coluna ("Buceta, cu e caralho: três instrumentos de foda" ou "Não vale mijar mais cedo nem cagar fora de hora"), mas glosador que se preza não perdoa nem motes aparentemente inocentes mas que, até certo ponto, induzem à interpretação maliciosa. É o caso desta pérola colhida entre os discípulos do grande Bocage nordestino Moysés Sesyom:
 

APARENTEMENTE, SIM;
ATÉ CERTO PONTO, NÃO.
 

[2] Se a tucanagem já existisse no tempo de Sesyom, talvez o mote fosse até escolhido como lema do partido. Em todo caso, é uma prova de que isso de ficar em cima do muro não foi inventado pelos tucanos, apenas aperfeiçoado. Afinal, as expressões "Não fode nem sai de cima" e "Não caga nem desocupa a moita" já existiam antes da posse do bundão e dos enrabadores que nos possuem e que quebram a dentadura mas não largam a rapadura. Quem glosou nosso mote não foi, porém, nenhum político safado, mas bons respeitadores da cultura popular como o jornalista paraibano José de Souza, que se saiu com esta:

Não ter certeza é o fim
Do que te falam isolado,
Perguntam-me se és veado —
Aparentemente, sim.
Aí perguntaram assim:
E a mãe do sacanão
Inda está na perdição?
Perguntaram se eu comi
E eu então respondi:
Até certo ponto, não.
[3] O conterrâneo de Souza, Bráulio Tavares, recebeu o passe e trabalhou bem a bola antes de marcar dois golaços nestas nonadécimas onde o mote fica para o rabinho em vez de penetrar no meio:
Ao entrar tão facilmente
No xibiu de Maristela,
Gritei: "Não eras donzela?
Mentiste, falsa inocente?"
Ela disse mansamente:
"Quê qué isso, meu patrão...
Aí passou tanta mão
Que acabei ficando assim...
APARENTEMENTE, SIM;
ATÉ CERTO PONTO, NÃO"

Raimunda quando se deita
E esfrega em mim seu revés,
Eu a ponho em quatro pés
E enrabo logo a sujeita.
Ela geme satisfeita
Murmurando: "Ai que tesão...
Entrou toda, coração?"
Eu olho, e respondo assim:
APARENTEMENTE, SIM;
ATÉ CERTO PONTO, NÃO."

[4] Quanto a mim, que desvirtuei até motes inexoravelmente machistas para abrir brecha à viadagem e à frescura, desta vez quebrei a expectativa e me comportei da forma neutra sugerida pelo mote em questão, limitando-me a questionar os óculos cor-de-rosa com que tucanos e outros "moderados" minimizam desgraças como a cegueira, justificando o ditado "Pimenta nos olhos (ou no cu) dos outros não arde":
Será que a visão ruim
Aperfeiçoa um poeta?
Então, ser cego o completa?
Aparentemente, sim!
No verso, falo por mim:
Dependendo da intenção,
Vale mais o palavrão!
É justo que um cego queira
Eufemizar a cegueira?
Até certo ponto, não! [8.72]
GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso