GLAUCOMATOPÉIA [#9]

[1] Uma das características do machismo é a autoridade, exercida não pelo mérito ou pelo respeito mas pela ostentação e pelo abuso. O machista combina perfeitamente com a concepção do sádico teorizada pelo filósofo Gilles Deleuze: o tipo bruto e folgado que age irracional e egoisticamente. Ao masoquista (no caso a mulher ou a bicha) caberia o papel racional, na tentativa de conciliar o folclórico "gosto de apanhar" com a sede de poder do mais forte, num comum acordo que na prática não funcionaria porque o verdadeiro sádico não respeita limites ou pactos. Traduzindo essa dialética para a sabedoria popular, a relação entre o sádico irracional e o masoquista racional se definiria pelo ditado "Manda quem pode e obedece quem tem juízo". Aliás, o adagiário abunda em exemplos de autoritarismo arbitrário: "Quem pode mais chora menos", "Quem pode, pode; quem não pode se sacode", e por aí vai.

[2] Em termos de Nordeste, a expressão maior do cabramachismo está no coronelismo. Como diz o ditado, "O exemplo vem de cima", e cada varão tem sua honra inspirada na virilidade do patriarca local. Virilidade e autoridade se confundem, pois "ser homem" é foder e poder. Em outras palavras, ninguém imagina um coronel bicha ou uma "coronela", embora seja respeitável a figura da professora ou da poetisa. Quanto ao viado, nem como cantador cego é bem-vindo. Daí o cavalo-de-batalha que faço do "xibunguismo", ou seja, a assunção da inferioridade do cego bicha enquanto porta-voz da pedra no sapato dos cabramachistas, desafiando a lei do silêncio e ao mesmo tempo referendando a superioridade implacável dos poderosos.

[3] Examinemos como funciona, na voz poética, o exercício do cabramachismo, interpretado ao pé da letra por um glosador potiguar, discípulo de Moysés Sesyom e radicado na mesma região do Açu: Luiz Xavier. Segue o emblemático provérbio em forma de mote e a versão do poeta:

REPITO: MANDA QUEM PODE,
ATENDE QUEM TEM JUÍZO!

Dessa maneira se fode
Quem comigo discordar,
Se eu nasci pra governar
Repito: manda quem pode.
Ninguém de mim faz pagode,
Todos sabem, sob aviso,
Só falo quando preciso,
No meu taco faço aposta,
Mas se eu mandar comer bosta,
Atende quem tem juízo.

[4] Já o paraibano Bráulio Tavares, radicado no Rio e familiarizado com o show business e com a elite intelectual, recorreu à sua vivência de compositor e ficcionista politizado para sugerir outras leituras do mote, glosadas em quadradécima ou nonadécima:
Se hoje em dia o pagode
É só o que a turba canta,
Reclamar não adianta;
REPITO: MANDA QUEM PODE.
Quando a malta se sacode,
Reclamar não é preciso.
E quem vai botar o guizo
Neste gato de má fama?
Quando dinheiro é quem chama,
ATENDE QUEM TEM JUÍZO.

A buceta proletária
Vale mais do que a burguesa
Pois acho que a safadeza
Não é nunca igualitária.
Se só a classe operária
Me conduz ao paraíso,
Eu jamais economizo
Tesão com nega que fode...
REPITO: MANDA QUEM PODE,
ATENDE QUEM TEM JUÍZO!

[5] Quanto a mim, rebato na tecla da deficiência para enfatizar a condição subalterna do homossexual "castigado" pela fatalidade:
Mesmo que o fato incomode,
Ninguém que é são tem respeito
Por quem porta algum defeito!
Repito: Manda quem pode!
O cego é quem mais se fode!
Meu próprio caso analiso:
Chupo a rola, escuto o riso
Do agressor, que nem conheço!
Ele manda, eu obedeço:
Atende quem tem juízo! [8.78]
GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso