GLAUCOMATOPÉIA [#10]
[1] Até aqui apregoei meu "xibunguismo" glosando os mesmos motes já trabalhados pelos poetas nordestinos, mas agora chegou o momento de dar mais um passo nessa trilha do atrevimento que me dispus a desbravar em meio à caatinga do cabramachismo. Trata-se de criar meus próprios motes, ou melhor, de desentranhá-los do seio mais íntegro e precioso da poesia nordestina: o cordel. Tecnicamente a proeza não requer heroísmos de guerreiro, já que o metro preferencial dos cordelistas (a redondilha maior) coincide com o dos glosadores, bastando isolar qualquer dístico dentro duma sextilha para se obter um mote em potencial, desde que o sentido se preste à intenção do poeta. A desfaçatez da façanha consiste, no meu caso, em profanar a filosofia do cordelista, desvirtuando-lhe o discurso em direção a contextos inteiramente alheios às posturas originais. Mais que paródia, pastiche ou intertextualidade, meu procedimento é uma expropriação dialética, pelo revisionismo que implica.
[2] Antes de introduzir essa nova modalidade de glosismo, faço questão de consubstanciar a proposta xibunguista nesta décima avulsa, que independentemente de mote equaciona a ousadia da empreitada:
MANIFESTO XIBUNGUISTA [8.101][3] Para que o leitor avalie o alcance da estratégia xibunguista, cabe explicar os motivos que me levaram a escolher Aderaldo e Zé Pretinho como fontes da deturpação. Considerado o último dos lendários cantadores, o cearense Aderaldo Ferreira de Araújo (1882-1967) imortalizou-se confrontando suas agruras de cego com o desafio representado não só pelo sertão inclemente mas pelos goliardos cantadores rivais, que supostamente levavam vantagem mas acabavam superados pela bravura do herói davidesco. Como no faroeste, onde o pistoleiro nômade duela com o manda-chuva local em cada vilarejo, Aderaldo teve que enfrentar outros famigerados cantadores no reduto deles. Reza a lenda que, ao passar pelo Piauí, em 1916, visitou o território onde reinava Zé Pretinho dos Tucuns, maior cantador do estado. O folheto que narra o duelo, na pessoa de Aderaldo, leva a autoria do piauiense Firmino Teixeira do Amaral e se intitula PELEJA DO CEGO ADERALDO COM ZÉ PRETINHO DOS TUCUNS. Nele o cego é provocado (e reage ao negro) em termos desaforados, como de praxe, nos quais a cegueira e a negritude são tratadas do modo mais politicamente incorreto possível. Mas dois pontos permanecem tabu: não se fala mal da sexualidade alheia, muito menos da própria sexualidade.Nordestina por batismo,
De quem faz cordel e glosa
A reputação que goza
Chamo de "cabramachismo".
Mas com todos rompo e cismo!
Cego e bicha, não vacilo
Se o mote trata daquilo:
Do Aderaldo chupo o espinho;
Lambo o pé do Zé Pretinho;
"Xibunguismo" é meu estilo!
[4] O que faço é justamente quebrar o tabu: primeiro, abordo irrestritamente a sexualidade; segundo, inverto a postura ofensiva, assumindo a inferioridade do fodido em vez de me vangloriar sobre os defeitos do adversário. Em Aderaldo a cegueira é trunfo do fraco diante da covardia do agressor; em mim a cegueira é calo exposto ao pisão do opressor, a toalha jogada aos pés do inimigo, a solene proclamação da derrota, a celebração do fracasso. Escolher Aderaldo e usar sua cegueira para desmoralizar a minha, portanto, vem a ser um artifício poético que cumpre dois propósitos: homenagear um ídolo meu e desabafar minha revolta contra uma cegueira e uma homossexualidade que não escolhi mas que tenho de engolir.
[5] Inicialmente vejamos o tom insultuoso com que o cego e o negro se mimoseiam. Da parte do cego, os ataques ao negro atingiam o seguinte nível, alternando metricamente as redondilhas maior e menor e variando estroficamente entre sextilhas e décimas:
Esse negro foi escravo,[6] Mas não foi a "argumentação" do cego que peguei para mote, e sim a do negro CONTRA o cego. E como ingrediente da glosa reciclei um episódio verídico de minha infância, já explorado em soneto: os abusos que sofri entre os nove e os dez anos, na mão (e no pé) dos moleques mais velhos (onze a treze anos) e mais chucros do bairro (periferia paulistana), que não se conformavam com o fato de um quatro-olho pó-de-arroz ser melhor aluno que todos eles juntos, e ainda por cima se recusar (por medo de machucar a vista) a participar de qualquer turma ou brincadeira grupal! O resultado foi que me obrigavam a participar dum outro tipo de brincadeira grupal, da qual nunca me esqueci e à qual devo minha fixação em pés masculinos. São os detalhes mais escabrosos daquelas curras que recheiam, incansavelmente, meus atuais versos, inclusive nas glosas aderaldianas. Por extensão, o poeta Glauco se coloca, mesmo adulto, na situação de vítima indefesa à mercê de agressores mirins ou juvenis, coisa que na prática acaba acontecendo a qualquer deficiente visual, ainda que a hostilidade não se materialize explicitamente como ato de estupro ou espancamento.
Por isso é tão positivo!
Quer ser, na sala de branco,
Exagerado e altivo!
Negro da canela seca
Todo ele foi cativo! (ADERALDO)[...]
Negro é raiz
Que apodreceu,
Casco de judeu!
Moleque infeliz,
Vai pra teu país,
Se não eu te surro,
Te dou até de murro,
Te tiro o regalo!
Cara de cavalo,
Cabeça de burro! (ADERALDO)[...]
Me desculpe, Zé Pretinho,
Se não cantei a teu gosto!
Negro não tem pé, tem gancho;
Tem cara, mas não tem rosto!
Negro na sala dos brancos
Só serve pra dar desgosto! (ADERALDO)
[7] Assim, quando Zé Pretinho desmoraliza Aderaldo, espicaçando:
Sai daí, cego amarelo,Glauco desentranha da sextilha o dístico abaixo e aplica a quadradécima seguinte:
Cor de couro de toucinho!
Um cego da tua forma
Chama-se abusa-vizinho!
Aonde eu botar os pés,
Cego não bota o focinho! (PRETINHO)
AONDE EU BOTAR OS PÉS
CEGO NÃO BOTA O FOCINHO!Mais reles dentre as ralés,
Do cego a raça descamba!
Quem enxerga lhe diz: "Lamba
Aonde eu botar os pés!"
Assim sofro, desde os dez,
Quando, na marra, engatinho,
Chupo paus, provo sebinho...
Não há, pra quem vê normal,
Sola suja sob a qual
Cego não bota o focinho! [8.61]