GLAUCOMATOPÉIA [#14]

[1] Para encerrar o ciclo de glosas desentranhadas da poesia do Cego Aderaldo, escolho um trecho do folheto onde a estrofe é composta na redondilha menor e faço dupla metamorfose: emendo dois versos pentas para formar um deca e utilizo, para a glosa, o martelo agalopado de que falei no capítulo sexto desta coluna. Assim, quando Zé Pretinho compara Aderaldo ao animal caçado, arrotando vantagem:

No sertão, peguei
Cego malcriado:
Danei-lhe o machado,
Caiu, eu sangrei!
O couro eu tirei
Em regra de escala:
Espichei na sala,
Puxei para um beco
E, depois de seco,
Fiz mais de uma mala!
Os versos que reconstruí como decassílabos e o mote resultante é o que vai abaixo, seguindo-se a respectiva quadradécima que compus no martelo agalopado:
NO SERTÃO, PEGUEI CEGO MALCRIADO:
CIPOEI, FIZ-LHE A BOCA DE BISPOTE! [8.83]

Vou contar, no martelo agalopado,
Uma história veraz que é sarro só!
Quando fui capataz, não tive dó:
No sertão, peguei cego malcriado!
Tinha língua famosa em todo o Estado,
Mas em mim viperino não dá bote
Sem que, em troca, em seu rosto a bota eu bote!
Ele fez do poema o que não faço,
Mas mostrei que quem manda é quem tem braço:
Cipoei, fiz-lhe a boca de bispote!
 

[2] Se profanei, com meu sujo passado exumado, a obra dum companheiro de cegueira como Aderaldo, tenho, por dever de ofício, que profanar também a obra dum irmão e antepassado na sacanagem: ninguém menos que o insuperável Bocage. Já que não se pode acrescentar nada ao que o Português fez em termos de soneto (ainda que eu o tenha suplantado em quantidade), dispus-me a estender-lhe o procedimento que empreguei sobre os versos do Cego: isolar e glosar motes a partir de fragmentos de estrofes. No caso bocagiano, todas as glosas que fiz partem de versos acentuados pelo martelo agalopado, de modo que a quadradécima possa ser construída acompanhando o ritmo. Vejamos, para começar, um dos típicos sonetos pornográficos dentre os que compilei para o sítio poético POP BOX, cujo link direto é:
http://planeta.terra.com.br/arte/PopBox/bocage.htm
[SONETO AO ÁRCADE FRANÇA]

No canto de um venal salão de dança,
Ao som de uma rebeca desgrudada,
Olhos em alvo, a porra arrebitada,
Bocage, o folgazão, rostia o França.

Este, com mogigangas de criança,
Com a mão pelos ovos encrespada,
Brandia sobre a roxa fronte alçada
Do assanhado porraz, que quer lambança.

Veterana se faz a mão bisonha;
Tanto a tempo meneia, e sua o bicho,
Que em Bocage o tesão vence a vergonha:

Quis vir-me por luxúria, ou por capricho;
Mas em vez de acudir-lhe alva langonha
Rebenta-lhe do cu merdoso esguicho.

[3] Eis o fragmento que aproveitei, a serviço da mesma postura homo-masoca e cegamente incorreta que caracteriza o xibunguismo de que falo:
TANTO A TEMPO MENEIA E SUA O BICHO
QUE EM BOCAGE O TESÃO VENCE A VERGONHA! [8.84]

Que de bicha me chamem! Eu me lixo
E me espelho no exemplo de Bocage,
A quem tara nenhuma cheira a ultraje,
Tanto a tempo meneia e sua o bicho!
Quando a porra, na cama, a sós esguicho,
Com chulé minha língua ainda sonha
E o sabor do sebinho atiça a bronha!
Em Mattoso, o anormal transgride a norma
E onde há nojo há prazer, da mesma forma
Que em Bocage o tesão vence a vergonha!

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso