GLAUCOMATOPÉIA [#15]

[1] Muito curioso esse conceito de maioria. Em política se admite que o governo da maioria é democracia, mas em matéria de usos e costumes o que de fato existe é uma ditadura da maioria. Isso se reflete até no reverso da medalha, ou seja, sobre aquilo que a maioria rejeita em vez de preferir. Exemplo: se a maioria do povo brasileiro gosta de samba, passa a vigorar a regra de que "quem não gosta de samba bom sujeito não é: é ruim da cabeça ou doente do pé". Mas se a maioria decidir (ou alguém por ela decidir) que quem gosta de pé é ruim da cabeça, fica estabelecido que o certo é gostar de bunda, a preferência nacional. Mesmo que a bunda feda e suje mais que o pé. Reconheço que o nojo é algo quase instintivo e que só vim a ter compulsão por chulé depois que fui levado na marra a vencer a natural repugnância para evitar o mal maior que seria a porrada. Mas uma vez vitimado, me viciei como vítima e fiz do vício virtude, pelo menos poética. Por isso fico indignado que tantos viciados em cheirar outras drogas (coca ou cola, por exemplo) menosprezem meu vício, só porque estou entre os poucos que "aprenderam" a cheirar chulé como quem cheira rapé.

[2] Dentro desse raciocínio se encaixam muitos dos sonetos que tenho feito, particularmente os do livro CENTOPÉIA, cujo subtítulo é justamente SONETOS NOJENTOS & QUEJANDOS. Este seria um dos mais emblemáticos dessa tese:
 

SONETO 16 NOJENTO #2

Se o pão dormido vira uma borracha;
se o leite está repleto de bichinho;
filé de bacalhau só tem espinho;
e surge uma perninha na bolacha;

Se um cheiro bom de açougue ninguém acha;
se é mais fedido o lixo do vizinho;
vinagre é o que devia ser bom vinho;
patê de caviar parece graxa;

Se a maionese tem sabor suspeito;
se o molho pronto é preto, e não vermelho;
se vem nervo demais no prato feito;

Se até sopa de lata tem pentelho,
por que ninguém respeita o meu direito
de degustar chulé num vão de artelho?

[3] Assim, quando me propus a trabalhar tais temas em forma de glosa, selecionei à guisa de mote alguns fragmentos cuja métrica batesse com o acento do martelo agalopado, como no seguinte soneto de Bocage:
 
[SONETO DO VELHO ESCANDALOSO]

Tu, ó demente velho descarado,
Escândalo do sexo masculino,
Que por alta justiça do Destino
Tens o impotente membro decepado!

Tu, que, em torpe furor incendiado
Sofres d'ímpia paixão ardor maligno,
E a consorte gentil, de que és indigno,
Entregas a infrutífero castrado!

Tu, que tendo bebido o méstruo imundo,
Esse amor indiscreto te não gasta
D'ímpia mulher o orgulho furibundo!

Em castigo do vício, que te arrasta,
Saiba a ínclita Lísia, e todo o mundo
Que és vil por gênio, que és cabrão, e basta.

[4] Os dois versos que desentranhei para mote são os que vão abaixo seguidos da minha glosa. Alterei apenas a grafia de "méstruo" para "mênstruo" e a colocação do pronome para "não te gasta", formas mais reconhecíveis:

TU, QUE TENDO BEBIDO O MÊNSTRUO IMUNDO,
ESSE AMOR INDISCRETO NÃO TE GASTA! [8.85]

Tu, que lambes buceta até no fundo,
Inda beijas a boca que chupava
Teu caralho, e que a puta nunca lava!
Tu, que tendo bebido o mênstruo imundo,
Vens dizer que com porcos me confundo
Só porque faço parte duma casta
Inferior, que do macho aos pés se arrasta
E que engole chulé, porra e sebinho?!
Se não chocam os versos que escrevinho,
Esse amor indiscreto não te gasta!
GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso