GLAUCOMATOPÉIA [#24]

[1] Se até quem está preso reivindica visitas íntimas, quanto mais quem está livre e desimpedido! O irônico é que às vezes é mais difícil a quem está livre deixar de ser só que a um preso deixar a cadeia. Isto porque, ao contrário do detento, o cidadão solto e solteiro não recebe visitas na hora que bem entende. Visitas deste tipo são sempre inesperadas ou inoportunas. Só para o visitado, evidente, pois o visitante é sempre oportunista e sempre espera obter alguma vantagem.

[2] Por experiência própria refiro-me a certos tipos parasitas que ainda sugam (para se deixarem sugar) alguns amigos meus que vivem se queixando da solidão. Eu nem me queixo da solidão, queixo-me da cegueira, algo bem mais metafísico, mas já passei por situações idênticas àquela que focalizo neste soneto:

SONETO 583 DESOCUPADO

Lamber-lhe as havaianas no solado;
também lamber por cima, descalçadas
apenas com a boca. Ouvir risadas.
A tanto é que forçado fui, vexado.

Forçou-me a tal vexame o mais folgado
vagau da redondeza, que as empadas
do bar, entre um bilhar e umas geladas,
mastiga, engole e cospe para o lado.

Tem mais de vinte e ainda não trabalha.
Estudo, nem pensar. O dia passa
na praça ou no boteco. Usa sandália.

De noite, em meu apê fila a cachaça,
arrota as que comeu, e então se espalha
na sala e me enche a boca, achando graça.

[3] Aqui Bocage divergiu de mim em dois pontos: é ele quem passa por aproveitador e suas visitas, ao contrário das minhas, eram inesperadas e nem sempre noturnas, a julgar por este espertíssimo soneto:
SONETO MATINAL

Eram seis da manhã; eu acordava
Ao som de mão, que à porta me batia;
"Ora vejamos quem será"... dizia,
E assentado na cama me zangava.

Brando rugir da seda se escutava,
E sapato a ranger também se ouvia...
Salto fora da cama... Oh! que alegria
Não tive, olhando Armia, que arreitava!

Temendo venha alguém, a porta fecho:
Co'um chupão lhe saudei a rósea boca,
E na rompente mama alegre mexo:

O caralho estouvado o cono aboca;
Bate a gostosa greta o rubro queixo,
E a matinas de amor a porra toca.

[4] Para glosar o soneto bocagiano escolhi os dois versos abaixo e, na falta duma presença feminina que me acorde de manhã cedo, recorro ao garoto que, com sua gangue, me abusou na infância e ainda me visita nos\ pesadelos e nas insônias, proporcionando-me, quando não o prazer carnal, ao menos um tema recorrente, no qual remergulho assim:
E SAPATO A RANGER TAMBÉM SE OUVIA...
SALTO FORA DA CAMA... OH! QUE ALEGRIA!

Quando fui estuprado, houve folia:
Os moleques, mais velhos que o quatrolho,
Lhe gargalham na orelha, espalham molho,
E sapato a ranger também se ouvia
Sobre um rosto, e lhe encobre a luz do dia!
O feliz filisteu que me judia,
Na memória, no orgasmo e na mania,
Toda noite repete a brincadeira,
E se o pânico o sonho mau já beira,
Salto fora da cama... Oh! Que alegria! [8.91]

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso