GLAUCOMATOPÉIA [#12]

[1] Quando propus o termo "quadradécima" para designar a glosa decimal tive em mente duas modalidades de mote: o mais usual é um dístico, cujo primeiro verso se encaixa no quarto verso da glosa (formando a QUADRA) e cujo segundo verso fecha a glosa (formando a DÉCIMA); outro tipo de mote é aquele que já vem em forma de QUADRA e que exige quatro décimas, cujas décimas linhas recebem, pela ordem, cada um dos versos da trova. Ora, ao desentranhar do cordel de Aderaldo os motes que me motivaram a chorar a cegueira sob o prisma do xibunguismo, deparei-me ora com sugestões limitáveis a um dístico, ora com raciocínios que, para terem sentido completo, precisavam ser recortados em blocos de quatro versos.

[2] Por outro lado, um mote dístico não precisa ser glosado por uma única décima, admitindo (até como teste de criatividade do poeta) variações sobre o tema. Foi o que fiz ao desentranhar do folheto o mote abaixo, quando Zé Pretinho desautoriza o Cego Aderaldo, alegando:

Cala-te, cego ruim!
Cego aqui não faz figura!
Cego, quando abre a boca,
É uma mentira pura!
O cego, quanto mais mente,
Ainda mais sustenta e jura!
Eis o mote tirado e glosado em dose dupla:
O CEGO, QUANTO MAIS MENTE,
TANTO MAIS SUSTENTA E JURA! [8.63]

Inútil! Inda que tente
Ser como quem dele ri,
Mais riso atrai sobre si
O cego, quanto mais mente!
Se a cegueira for recente,
Aumenta a sua amargura!
Se ele diz que crê na cura,
Os que enxergam acham graça!
Maior ridículo passa,
Tanto mais sustenta e jura!

Ao dizer que cego é gente
O próprio cego se ilude,
Mas não burla a juventude:
O cego, quanto mais mente,
Mais atiça o adolescente,
Que fica de pica dura
Quando apronta a diabrura!
Mesmo inerme, teima o cego:
Menor que esteja o seu ego,
Tanto mais sustenta e jura!
 

[3] Vejamos agora um exemplo do segundo caso, quando tiro toda uma quadra dum momento em que Pretinho desfaz da espiritualidade de Aderaldo, espezinhando:
Cego, eu creio que tu és
Da raça do sapo sunga!
Cego não adora a Deus:
O deus do cego é calunga!
Aonde os homens conversam,
O cego chega e resmunga!
Eis a quadra aproveitada e as respectivas décimas com que respondi:
CEGO NÃO ADORA A DEUS:
O DEUS DO CEGO É CALUNGA!
AONDE OS HOMENS CONVERSAM,
O CEGO CHEGA E RESMUNGA! [8.64]

Que sou sacrílego dizes
Se a cegueira amaldiçôo!
Ave privada do vôo
Sou, e peço que me pises!
E por portarem felizes
Olhos sãos, rirem dos meus
Os pequenos filisteus,
Só da desgraça me gabo:
Já que é refém do Diabo,
Cego não adora a Deus!

A fim de que o crente O veja,
Deus lhe deu Sua figura,
Só o cego, que Ele exconjura,
Na desilusão rasteja:
Não tem credo nem igreja,
Não confessa nem comunga!
Só lamenta, chora e funga,
Mergulhado em negros breus!
Sem ter imagem de Deus,
O deus do cego é calunga!

Não me limito ao lamento
Quando faço poesia:
Também quero que alguém ria,
Por isso os sarros comento!
Ao tomar conhecimento
Do que meus escritos versam,
Alguns leitores dispersam
Mas outros dão gargalhada,
E o cego vira piada
Aonde os homens conversam!

O que mais diverte o macho
Nesses meus casos de sarro
São os termos com que narro
Quando, na marra, me agacho
E exponho a boca ao escracho:
"Mal o ceguinho cafunga
No que está dentro da sunga,
Se embasbaca e engasga nela!
Penetrado até a goela,
O cego chega e resmunga!"
 

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso

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