GLAUCOMATOPÉIA [#21]

[1] Fala-se muito da escravidão infantil, inclusive para fins sexuais e comerciais (a tal da pedofilia brutalizada ao extremo), mas pouco se aprofunda a questão inversa, isto é, do excesso de liberdade de que desfruta a criançada na "avançada" psicologia educacional hoje em voga entre pais e mestres. Melhor diríamos ausência de psicologia e de educação, já que uns e outros não estão nem aí e a gurizada faz o que bem entende, honrando o ditado "Quando está fora o gato, folga o rato". Até bolei um soneto no qual a prepotência pueril se encaixa no quadro cada vez mais iminente dum "anarquismo totalitário" ou "totalitarismo anárquico", espécie de salve-se-quem-puder globalizado onde quem pode mais chora menos:

SONETO 590 DETURPADO

Crianças cada vez mais pequeninas
farão pedofilia pelo avesso:
são elas que, no tranco e no tropeço,
irão impor a nós jogos traquinas.

Requinte nas torturas e chacinas
virá da idéia delas. Me entristeço
mas sei que o horror futuro tem por preço
adultos a lamber mirins botinas.

"Mamãe, você me leva a ver o preso
comer cocô, beber xixi? Só quero
ver ele sentir nojo!" E um indefeso

detento é transformado logo em mero
brinquedo ao molequinho, que faz peso
pisando um cabeção raspado a zero!

[2] Mas enquanto os futuros ditadores não imperam desde pequenos, faço um exercício de imaginação em cima dum soneto de Bocage e da reminiscência de minha própria infância tiranizada sob o jugo (ou jogo) de outros meninos. No soneto Bocage satiriza um padre sem moral, que tanto poderia ser pai quanto... mãe! Eis o dito:
SONETO DO PADRE PATIFE

Aquele semi-clérigo patife,
Se eu no mundo fizera ainda apostas,
Apostara contigo que nas costas
O grande Pico tem de Tenerife.

Célebre traste! É justo que se rife;
Eu também pronto estou, se disso gostas;
Não haja mais perguntas, nem respostas;
Venha, antes que algum taful o bife.

Parece hermafrodita o corcovado;
Pela rachada parte (que apeteço)
Parece que emprenhou, pois anda opado!

Mas desta errada opinião me desço;
Pois que traz a criança no costado,
Deve ter emprenhado pelo sesso.

[3] E eis o mote que tirei e glosei, sempre no martelo agalopado, a partir do soneto acima e em cima do propalado despotismo dos "pestinhas", os quais, quando não podem exercê-lo sobre um adulto, abusam de outra criança mais à mão (e aos pés), no caso eu mesmo, na minha inferioridade precocemente masoquista:
POIS QUE TRAZ A CRIANÇA NO COSTADO,
DEVE TER EMPRENHADO PELO SESSO!

Bem propício ao martelo agalopado
É o garoto a cavalo sobre o cego,
E este alegra o carrasco que carrego,
Pois que traz a criança no costado!
Rememoro um pedaço do passado,
Quando os dois, um submisso, outro travesso,
Puberdade nem tinham no começo...
Hoje nada é tão crível que se diga,
Pois dirão, se me virem a barriga:
"Deve ter emprenhado pelo sesso!" [8.87]

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso

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