GLAUCOMATOPÉIA [#22]

[1] Tenho sido muito rotulado e pouco estudado, mas não repudio os rótulos. O mais recente foi "poeta da crueldade", mas antes da cegueira (e do "xibunguismo" no terreno da glosa) eu já era conhecido como sadomasoquista e podólatra. No começo, porém, os rótulos mais colados foram de coprófilo (por conta da insistência em verbalizar a merda a propósito de tudo) e, mais genericamente, de escatológico (por conta de outros temas associadamente repugnantes). Claro que os rótulos são descartáveis como as embalagens, até porque não fui eu quem inventou a nojeira na poesia, nem esta é minha única fixação. Em todo caso, me orgulho do asco que meus versos possam provocar -- por dois motivos relevantes: por ver que a poesia surte efeito no estômago (se não no coração ou na mente) do leitor, e por ter ilustres predecessores.

[2] Quanto ao primeiro motivo, a repercussão de meu livro CENTOPÉIA talvez seja explicável pelo subtítulo SONETOS NOJENTOS & QUEJANDOS. No capítulo 15 desta coluna dei como exemplo o segundo "Soneto Nojento". Segue agora o primeiro:

SONETO 10 NOJENTO

Tem gente que censura o meu fetiche:
lamber pé masculino e o seu calçado.
Mas, só de ver no quê o povo é chegado,
não posso permitir que alguém me piche.

Onde é que já se viu ter sanduíche
de fruta ou vegetal mal temperado?
E pizza de banana? E chá gelado?
Frutos do mar? Rabada? Jiló? Vixe!

Café sem adoçar? Feijão sem sal?
Rã? Cobra? Peixe cru? Lesma gigante?
Farofa de uva passa? Isso é normal?

Quem gosta disso tudo não se espante
com minha preferência sexual:
lamber o pé e o pó do seu pisante.

[3] Quanto ao segundo motivo, só em Portugal tenho por companhia nomes do quilate dum Abade de Jazente, dum Pedro José Constâncio (por sinal meu xará de batismo) ou dum Bocage. A este último tem sido atribuído um soneto que é talvez o mais célebre e representativo dessa linha temática:
SONETO ASCOROSO

Piolhos cria o cabelo mais dourado;
Branca remela o olho mais vistoso;
Pelo nariz do rosto mais formoso
O monco se divisa pendurado.

Pela boca do rosto mais corado
Hálito sai, às vezes bem ascoroso; [pronuncia-se "ascroso"]
A mais nevada mão sempre é forçoso
Que de sua dona o cu tenha tocado.

Ao pé dele a melhor natura mora,
Que deitando no mês podre gordura,
Fétido mijo lança a qualquer hora.

O cu mais alvo caga merda pura:
Pois se é isto o que tanto se namora,
Em ti mijo, em ti cago, ó formosura!

[4] Para comprovar que tal lirismo escatológico vem de longe, descobriu-se que o soneto acima (do século XVIII) tem um antecedente anônimo do século XVII, abaixo transcrito:
SONETO DA PORCARIA

Que fio de ouro, que cabelo ondado,
piolhos não criou, lêndeas não teve?
Que raio de olhos blasonar se atreve,
que não foi de remelas mal tratado?

Que boca se acha ou que nariz prezado
aonde monco ou escarro nunca esteve?
E de que tal cristal ou branca neve
não se viu seu besbelho visitado?

Que papo de mais bela galhardia
que um dedo está do cu só dividido,
não mija e regra tem todos os meses?

Se amor é tudo merda e porcaria,
e por este monturo andais perdido,
cago no amor e em vós trezentas vezes.

 [5] Nada mais conseqüente, portanto, que ao glosar motes desentranhados de Bocage eu tirasse o seguinte dístico no ritmo martelado, que, já numa ótica "xibunguista" e autobiográfica, se resolveria nos seguintes termos:
POIS SE É ISTO O QUE TANTO SE NAMORA,
EM TI MIJO, EM TI CAGO, Ó FORMOSURA!

És poeta que a mídia condecora
E que a crítica trata por objeto:
És discreto, no abstrato ou no concreto!
Pois se é isto o que tanto se namora,
Eu desisto da fórmula: estou fora!
Minha vida não tem nada de pura:
Desde cedo, encarei a pica dura,
Fosse minha ou alheia, como arteira!
Se teu verso não fede, a mim não cheira:
Em ti mijo, em ti cago, ó formosura! [8.89]

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
  

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