GLAUCOMATOPÉIA [#28]

[1] Se em sociedade o grau de finesse ou grosseria é proporcional a cada classe ou casta, em poesia o baixo calão não significa necessariamente baixo escalão. Assim como existem putas de alto bordo, a putaria de alto bardo acaba virando uma espécie de caviar de alcova, iguaria que só pode ser bem apreciada por quem tem cultura ou leitura capaz de aquilatar as filigranas do idioma. Afinal, o vocabulário chulo também tem seus requintes, e saber lapidá-lo em moldes de quilate exato requer mestria, raro privilégio duma elite intelectual. Em suma, o luxo do lixo. Para ironizar a posição subalterna do masoquista, que resulta, às avessas, numa "aristocratização" do fetichismo, eu tinha feito o seguinte  soneto:

SONETO 97 HIERÁRQUICO

A deusa tem o pé formoso e claro.
Seu súdito usa bota cara e fina.
O faxineiro dele usa botina.
Sou servo deste último, e declaro:

Conheço suas meias pelo faro.
Seu pau tresanda a sebo, porra e urina.
O cu fede o normal, você imagina.
É um cara sem nenhum aroma raro.

Abaixo do nariz vem minha boca,
e acima do meu rosto está seu pé.
Respeito sua preguiça dorminhoca:

Limito-me a cheirar o seu chulé,
enquanto minha boca fica oca...
Sou cego, e meu lugar já sei qual é.

[2] Bocage, que viveu numa época em que a estratificação social era bem mais rígida e distinta, não perdia chance de alfinetar os poderosos, mas às vezes transferia com agudo senso de humor o conceito de poder para o campo da sexualidade. No soneto abaixo ele subordina convenções e conveniências a uma "sociedade" genital que se sobrepõe à saciedade genial:
[SONETO DO CARALHO GOVERNANTE]

Pela escadinha de um courão subindo
Parei na sala onde não entra o pejo;
Chinelo aqui e ali suado vejo,
E o fato de cordel pendente, rindo;

Quando em miséria tanta refletindo
Estava, me surgiu ninfa do Tejo,
Roendo um fatacaz de pão com queijo,
E para mim num ai vem rebolindo:

Dá-me um grito a razão: -- "Eia, fujamos,
Minha porra infeliz, já deste inferno...
Mas tu respingas? Tenho dito, vamos..."

Eis a porra assim diz: -- "Com ódio eterno
Eu, e os sócios colhões em ti mijamos;
Para baixo do umbigo eu só governo".

[3] Ao glosar marteladamente o mote agalopado que destaquei do soneto acima, tomei minha inferioridade (numérica, física e psicológica) como motivo para mais uma reminiscência da infância do deficiente abusado:
EU, E OS SÓCIOS COLHÕES EM TI MIJAMOS;
PARA BAIXO DO UMBIGO EU SÓ GOVERNO!

Sendo o escravo que fui de mirins amos
Alargou-se-me a boca inda infantil
Ante os paus que a fizeram de funil:
"Eu e os sócios colhões em ti mijamos!
Somos sete, és um só! Nos divirtamos!"
Assim disse, num termo menos terno,
O mais jovem feitor do meu inferno!
Me apequeno inda mais quando ajoelho
E me ralha o caralho do fedelho:
"Para baixo do umbigo eu só governo!" [8.96]

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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