GLAUCOMATOPÉIA [#31]

[1] Encerro com iniciação este ciclo de glosas agalopadas sobre os martelados motes bocagianos. Desde a escola primária, em torno da qual sofri os primeiros abusos e me iniciei no sadomasoquismo, minha atenção se voltou para os trotes com que são recepcionados os novatos pelos veteranos universitários, militares, carcerários ou mafiosos. Cheguei a me disfarçar de calouro para poder passar pelo trote duma universidade que não cursei, só porque tinham fama de vexaminosos. Também cheguei a escrever um ensaio histórico sobre o assunto, pesquisado desde a Idade Média e pelo mundo afora. Recentemente saiu outro livro tratando do tema, desta vez estudado por professores da escola Luiz de Queiroz, tradicional estabelecimento de ensino agronômico no interior paulista, onde os trotes se celebrizaram pela truculência. Aproveitando a retomada das atenções sobre o fenômeno, fiz nova série de sonetos alusivos, dentre os quais este:

SONETO 649 DOMESTICADO

Recém-chegado, o "bicho" verifica
que vai passar por trotes humilhantes.
Aceito é na república, mas antes
será feito de cão, no que isso implica:

Andar de quatro e nu, solada e bica
levando a toda hora; ouvir rompantes
e gritos dos "doutores"; repugnantes
porções comer no chão qual ração rica.

Chinelos ao "doutor" levar na boca;
lamber-lhe os pés descalços e o sapato;
ganir de muita dor; graça, achar pouca.

Latir, abanar rabo e inda ser grato;
rosnar jamais; bem alto e com voz rouca
jurar que é "bicho" e escravo dum pé chato.

[2] Bocage não estava preocupado com faculdades, mas observou que nos bordéis a carne nova passa também pelos ritos introdutórios, e satirizou a situação duma inicianda neste implacável soneto:
[SONETO DA PUTA NOVATA]

Dizendo que a costura não dá nada,
Que não sabe servir quem foi senhora,
A impulsos da paixão fornicadora
Sobe d'alcoviteira a moça a escada.

Seus desejos lhe pinta a malfadada,
E a tabaquanta velha sedutora
Diz-lhe: "Veio menina, em bela hora,
Que essas, que tenho, já não ganham nada".

Matricula-se aqui a tal pateta,
Em punhetas e fodas se industria,
Enquanto a mestra lhe não rifa a greta.

Chega, por fim, o fornicário dia;
Dentro em pouco a menina de muleta
Passeia do hospital na enfermaria.

[3] A glosa deste soneto não poderia ser outra senão meu batismo como "adventício" pelos coleguinhas do primário numa periferia que já era barra-pesada na década de 60. Eis o trecho escolhido e a solução que dei ao tema:
MATRICULA-SE AQUI A TAL PATETA,
EM PUNHETAS E FODAS SE INDUSTRIA...

Nesta escola primária é que se enceta
A carreira do Glauco, ou seja, o cio;
Quando tudo ao redor era baldio,
Matricula-se aqui o tal pateta!
A cegueira não era inda completa,
E o menino, isolado, apenas lia;
Os colegas invejam-lhe a mania
E desforram na curra quando o pegam!
Assim, pois, que seus velhos olhos cegam,
Em punhetas e fodas se industria... [8.100]

GLAUCO MATTOSO
Poeta, letrista, ficcionista e humorista. Seus poemas, livros e canções podem ser visitados nos sítios oficiais:
http://sites.uol.com.br/glaucomattoso
http://sites.uol.com.br/formattoso
 

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