[1] A antiga briga entre a coerência e o direito de mudar de idéia parece estar na ordem do dia no governo Lula. Se dentro da própria esquerda já se digladiam as tendências de ortodoxia e revisionismo, imagine-se uma guinada neoliberal num partido socialista! Mas também na poesia a questão da fidelidade aos princípios volta e meia vem à baila, tanto em termos formais quanto temáticos. Para não fugir à regra, fiz este sonetinho, usando a cegueira à guisa de símbolo duma trajetória sem descaminho:

SONETO 266 RETILÍNEO

O verso decassílabo é perfeito
exemplo geométrico da linha
que vai de ponto a ponto, esticadinha
no trilho, como um rio em reto leito.

Assim, também o cego está sujeito
à bússola instintiva, que adivinha
a justa direção em que caminha,
qual gato equilibrado em parapeito.

Caráter e excreção também são retos:
A honra leva o honrado ao suicídio,
mas pode ser herdada por seus netos.

No caso do intestino, lembra o ofídio:
estica-se ou se dobra, e seus dejetos
são obra, como a cobra, do dissídio.

MERDA N'ÁGUA NÃO AFUNDA
MAS NUNCA VAI PR'ONDE QUER.

Nem a ciência profunda
Vem desmentir o que eu digo:
Seja de rico ou mendigo
Merda n'água não afunda.
Saindo de qualquer bunda,
Mesmo de homem ou mulher,
E num riacho qualquer
Você a depositando,
Vai ver que ela sai boiando,
Mas nunca vai pr'onde quer.

Quer pular de volta à bunda;
Assim parece o tolete,
Flutuando na retrete:
Merda n'água não afunda!
Mais errante e vagabunda
Que essa rota de escaler
É a volta que um cego der:
O cego ziguezagueia,
Dança, avança, volta e meia,
Mas nunca vai pr'onde quer! [8.68]

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