Raquel Naveira
Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.
Coluna semanal de Raquel Naveira
– Nº 1, 16/10/2014
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Melancia
Gosto de ir à feira. Uma festa para os sentidos, as bancas repletas de frutas, verduras, legumes. Os peixes prateados no gelo. As barracas de flores. As formas, os odores, os sucos, as cores. A beleza da natureza pronta para um quadro, uma tela, um pedestal.
Nesta mesa forrada de plástico verde e branco, destacam-se os pedaços de melancia, tão vermelha e doce. As numerosas sementes negras gritam um hino à abundância, à fecundidade, às origens.
Vi-me criança no sítio. Era verão. O sol quente parecia cuspir fogo como um dragão. Os feixes de arroz eram cortados a foice. Uma trilha nos levava ao córrego, um riacho frio que fluía entre as pedras. Iolanda, filha mais velha dos caseiros, ia à frente, com a trouxa de roupas. Tinha cabelos crespos, olhos verdes e o ar de camponesa rude que conhece os segredos da terra e seus perpétuos reinícios. Passamos pela roça de melancias. A planta de caule mole subia pelo arame farpado, retorcia-se pelo chão como uma serpente, envergava-se ao peso volumoso dos frutos de casca listrada e luzidia. Eu olhava aqueles frutos com satisfação, maturando projetos na minha vida de sonhadora. Aqui e ali, no solo seco e arenoso, na erva trepadeira, sempre renascida, brotavam flores amarelas. Iolanda agora carregava roupa e melancia pelo caminho. Chegamos ao córrego, onde uma tábua servia de tanque e escorregador. Penetrávamos na água sem espuma, os pés na lama, como se entrássemos num corpo de alma úmida. Éramos donzelas e os peixes sumiam.
Contei para Iolanda aquela história do Américo Pisca-Pisca, que Dona Benta, do Sítio do Picapau Amarelo, narrou à travessa boneca Emília para dissuadi-la de querer reformar a natureza. Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de colocar defeito nas coisas. O mundo para ele estava todo errado. O pomar era prova disso: a jabuticabeira enorme dava frutas pequeninas e as colossais melancias eram presas ao caule de uma planta rasteira.
Américo resolveu tirar uma soneca, à sombra da jabuticabeira. Dormiu e sonhou com um mundo novo reformado por suas mãos. De repente, uma jabuticaba caiu e se esborrachou no seu nariz. Américo despertou, meditou sobre o caso e reconheceu que o mundo não era tão mau: – Se o mundo fosse arranjado por mim, a primeira vítima teria sido eu, morto por uma melancia. Iolanda riu, pisca-piscou:
– A natureza tem cada uma. Às vezes o vento e os pássaros enxertam as plantas. Por isso é preciso tomar cuidado. Nunca plantar melancia perto de porungo, aquele fruto seco como coco. A melancia mofa. A cabaça enche d'água. Melancia é bom perto do córrego e porungo, longe. Melancia é suculenta. Porungo é duro, feito para guardar mel de abelha. Melancia tem polpa e porungo fibra. Porungo vira cuia de chimarrão e tereré. Chocalho de índio. Melancia a gente corta em fatias e devora na boca. Cada coisa tem sua serventia.
Compro a melancia inteira, pesada como um ventre grávido. Vai direto para a geladeira, pensei. À noite, lá, no meu passado, uma sereia saiu do córrego, rescostou-se na tábua e ficou chupando melancia.