Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.    

Coluna de Raquel Naveira
Nº 65

BAILARINA

                        Gostaria de ter me vestido um dia de bailarina. A saia de tule, as meias de seda, as sapatilhas trançadas nas pernas. Eu daria saltos grandes e pequenos, faria movimentos lentos, os calcanhares virados para fora. E um parceiro me levantaria, transportando-me pelo palco para que eu exibisse graça, equilíbrio, os braços desenhando arabescos. Seriam momentos de magia, de puro instinto de vida. 
                        Certamente a peça seria o clássico Lago dos Cisnes, balé dramático do compositor russo Tchaikowisky.  A princípio, eu seria o cisne branco, a meiga Odette, mulher aprisionada num corpo de cisne, deslizando pelo lago do castelo, onde morava o príncipe Siegfried, aquele que poderia libertá-la do feitiço jogado pelo mago, dono do lago.
                        Como Odette eu faria variações suaves, me flexionaria como se tivesse asas, os olhos súplices, destilando cristais. Depois, encarnaria o cisne negro, a gêmea má, Odile, filha do bruxo. Aí eu executaria piruetas, giraria enlouquecida na ponta dos pés, golpearia o ar com erotismo, atrairia o príncipe com olhos de fogo. Atingiria uma densidade emocional feita de  paixão e desespero. Os violinos acompanhariam as sutilezas do desejo, da traição, do engano, da morte. Odette e Odile se debatendo em busca obsessiva pela perfeição. Ao final, exausta, o bem venceria entre plumas, juras de amor e perdão.
                        Como é lindo o meu sonho tardio de ter sido uma bailarina. Degas, o pintor impressionista francês, retratou tão bem esse universo. Ficou conhecido por sua visão particular do balé. Captou os mais belos cenários em tons pastéis: a aula de dança, a bailarina encostada na barra, flexionando os joelhos, os músculos, os tendões elásticos, a imagem refletida no espelho do fundo; as bailarinas no salão atando as sapatilhas cruciantes, escondendo os pés calejados e sangrentos; a primeira bailarina que parece voar, expressiva, alarmante, explodindo na tela.
                        Registro aqui o meu tributo àquela que foi a primeira bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por mais de trinta anos, Ana Botafogo. Assisti uma vez a uma apresentação sua, tão pequenina e gigante, cheia de inteligência, técnica e criatividade. A leveza de uma gazela, de uma folha ao vento e a força de uma fera felina.
                        De dia, sou cisne, poetisa inspirada que morre cantando, que canta morrendo. À noite, mulher desamparada, à espera do êxtase. Acompanhando notas de estranhas escalas, livro-me do que é perecível. A prece é minha dança.

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