Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 156 - 2ª quinzena de junho 2009
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

O IGARAPÉ DO INFERNO, 14
(Romance inédito)       

                       – A Curva do Tucumã era ali, disse ele.
                     Todos olharam em silêncio respeitoso.
                      – Além daquela ponta era o território numa. Porque até hoje, passados tantos anos, ninguém foi lá, conferir?
                      – O tapiri de Ribamar era por aqui. Tudo pegou fogo, naquela noite.
                     – E onde ele viu aquelas meninas numas?
                     – Ali mesmo, respondeu. Os numas vinham do rio Pique Yaco, do Toro. Era muitos, centenas, mas nunca foram vistos. Ficaram invisíveis, na floresta. Eles vinham na vazante. Era possível saber que estavam ali porque a caça desaparecia. Eles comiam tudo, o porco, o mutum, a anta. Caçavam com flecha de cana brava, com arco de palmeira. Os paus d'arcos eram a pupunha, a bacaba, o patauá, o paracoúba, itaúba. Na caça, as flechas eram pequenas e não tinham veneno.
                     – Eles não mataram Ribamar porque não quiseram...
                     – Por que não mataram Ribamar?
                     – Não sei.
                     – Talvez as meninas estivessem apaixonadas por ele.
                     – Talvez.
                     – Naquela noite morreram todos, o tio e o irmão.
                     – Mas não ele! Mas não ele!
                     – Sim, disse o outro. Ele pulou n'água e desapareceu. Foi levado pela correnteza e acabou chegando no Manixi.
                     – De noite.
                     – Sim, de noite.
                     – Cara de sorte.
                     – Ele sempre teve sorte na vida.
                     – Vamos fotografar.
                     – Sim, vamos.
                     – Cuidado com este galho. Está cheio de aranhas.
                     – Daqui ele foi levado até ao Manixi, onde passou a ser empregado do palácio.
                     – Pierre Bataillon o tinha sempre perto de si.
                     – Ele foi protegido da Ifigênia Vellarde, mulher de Bataillon.
                     – Temos uma foto de Pierre?
                     – Acho que não. Não sobrou nada do palácio.
                     – Dizem que era baixinho e magro. Mas muito arrogante.
                     – Aqui está: “Bataillon homem magro, baixo. Bem vestido. Empertigado. Gestos largos, modos aprumados. Nervosos. Dignidade, cortesia, à moda antiga. Nariz aquilino. Cabelos finos. Bigodinho. Negro. A cabeça levantada, nobre. Aura. A gravata borboleta, o paletó de linho branco, abas, calças largas, sapatos verniz. Parece suportar, nas costas retas, barbatanas retiformes de manequim retígrado. Olha. O gesto, o olhar. Com que, altaneiro, superior, soberbo, se dirige aos demais. Soberano, concessão real. Atrapalha. Representa. Apesar da estatura baixa, como se olhasse de cima. De patamar superior. Polidez, dignidade.”
                     – Um dia apareceu num antiquário um relógio de ouro John Bull com o nome dele inscrito.
                     – E um revólver de prata, um revólver Smith, cabo de marfim.
                     – Dizem que ele atirava bem.
                     – Tinha uma coleção de armas.
                     – Vamos voltar, vai chover.
                     – Sim vamos.

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