Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 17, 12/03/2015

PAPELARIA

Como todo escritor gosto muito de papelaria. Sempre há algo a adquirir: papel sulfite não pode faltar nunca, nem envelopes para responder cartas, canetas que deslizem azuis, lápis para pequenos desenhos, blocos de anotações, clipes, grampos, cola, apontadores, etiquetas, pastas, fichas... Uma lupa é essencial para decifrar certas letras, números e mistérios.

O papel está intimamente ligado ao ofício da escrita. É bom sentir sua textura, poder dobrá-lo, acariciá-lo. Gosto de cadernos grandes porque computador para mim é só para passar a limpo, mas esses dias resolvi escrever minhas crônicas em folhas de papel almaço. Que alegria. Retomei um deleite de meus tempos de escola, de trabalhos e textos que eu enfeitava com traços e cromos coloridos de flores.

A história do papel é tão bonita. O papiro crescia em moitas cerradas no delta do rio Nilo, verde com tufos em forma de esplêndidos chuviscos. Cetros mágicos das deusas egípcias. A planta deu origem aos pergaminhos enrolados que guardavam vozes, segredos e revelações.

Em todas as fases da minha vida, nas casas e lugares que morei, havia sempre uma papelaria por perto para meu passeio habitual. Como quem compra pão, lá ia eu preparar a massa aromática de quem brinca com palavras. Certa vez, deparei-me com um aviso na porta: “Fechado para balanço”. Era primeiro de janeiro. Sorri: “Só eu mesma para vir à papelaria em pleno alvorecer do ano.”

Contei depois ao dono da loja, que comentou: “ – Poderia ter batido, tocado a campainha. Para você eu abriria com prazer”. Agradeci a compreensão. Sim, a papelaria é meu universo, minha galáxia de Gutenberg, minha parte na revolução da imprensa, minha vocação de monja escriba, de escrivã de esquadra, meu prelo luminoso, meu pacto com a filologia, minha paixão por palimpsestos perdidos, minha lembrança atávica de pastas de fibras feitas de folhas de bananeiras.

"Não me convidem para serviços insignificantes como ganhar dinheiro"

Com papel e tinta posso ordenar o caos, refletir, criar arte. Não me convidem para serviços insignificantes como ganhar dinheiro, nem para tarefas odiosas como ir a bancos, supermercados e médicos (quando muito tomo umas vitaminas). Mas ir à papelaria é o momento alegre de projetar mentalmente um novo poema, um novo livro. As horas vão passar e nem perceberei que o dia se foi, que escureceu, que será necessário acender as luzes noite adentro sobre meus papéis avulsos.

Lembrei-me daquela passagem em que o apóstolo Paulo pede a Timóteo que lhe traga os objetos que deixou em Trôade, na Ásia: a capa e os livros, principalmente os pergaminhos. A capa era para o inverno que se aproximava, rigoroso. O inverno afetivo e existencial. Os livros demonstravam que mesmo estando ele prestes a morrer, ainda queria ler os clássicos e estudar. Os pergaminhos seriam suas cartas? Rolos cheios de palavras proféticas? Como Paulo, preciso muito de uma capa, dos meus livros e pergaminhos. São minha única riqueza.

O tempo urge. Preciso passar pela papelaria e depois escrever. Um dia sem escrever algo no papel seria falho e me encheria de culpa.

____________

Colunas anteriores:
01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16

« Voltar colunistas