Uma vida, várias histórias
Fabiana de Castilho
4º capítulo
Foram quatro anos de inteiro
envolvimento com a faculdade e estava decidida a cumprir minha promessa.
Nada mais de homens em minha vida. Larguei o emprego no shopping e comecei
os meus primeiros estágios. Realmente, não tinha mais tempo
para nada. Os estudos consumiam toda minha energia. E isto era maravilhoso.
Conheci pessoas novas, com interesses em comum, mas nada marcante.
No segundo ano de curso,
uma garota nova mudou para a turma. Ficamos bastante próximas, saiamos
todos os fins de semana e viramos confidentes. Um dia ela me ligou dizendo
que gostaria de falar comigo algo de extrema importância. Não
estranhei, pois sempre tínhamos algo de extrema importância
para conversar. Fomos a um bar de música ao vivo e foi aí
que veio a bomba.
Ela me disse que era lésbica,
que estava interessada em mim e que queria ficar comigo. Eu disse que o
máximo de relacionamento que poderia existir entre nos era o de
amizade. Que apesar de estar sozinha, eu era hetero e tinha certeza de
minha sexualidade. Será? Quase entrei em parafuso quando percebi
que também sentia algo por ela, e não era amizade. Coitada
de minha terapeuta. Sim, porque depois de meu último envolvimento
amoroso, eu resolvi que precisava de ajuda profissional. E agora tinha
mais este problema.
Comecei a freqüentar
bares e boates gays, com ela e fiquei surpresa ao perceber que me sentia
muito a vontade. E assustada, também. Nunca ficava com ninguém,
mas morria de raiva quando ela encontrava uma antiga namorada e me deixava
sozinha. Foi um relacionamento meio platônico. Nunca deixamos de
nos ver, de sair juntas, só que nada além disso aconteceu;
mas foi o suficiente para abalar minha crença sexual e mexer com
minhas fantasias. Como se não fosse o bastante, quando estava no
fim do terceiro ano de curso, tive uma das mais terríveis e marcantes
experiências de minha vida.
Estava em período de provas finais, e meu currículo se
mantinha impecável. Não podia deixar cair agora. Minha avó
veio nos visita e eu não lhe dei muita atenção, pois
estaríamos juntas no fim de semana e nada iria nos atrapalhar. Mas
o destino resolveu agir antes. Na véspera de viajarmos de Curitiba
para Santa Catarina, recebemos um telefonema dizendo que minha avó
havia sofrido uma queda e batido a cabeça. Estava internada em estado
grave. Ela ficou dois dias no CTI, mas, apesar do quadro, os médicos
resolveram transferi-la para um quarto normal.
Resolvi ficar com ela. Durante
a noite, foi o período mais crítico. Minha avó teve
um derrame e nenhum medico ou enfermeira podia vir para vê-la. A
única enfermeira que o fez, não deu muita importância
para o que estava acontecendo, dizendo que nada poderia ser feito. Minha
avó agonizou a noite toda, e eu ao seu lado segurando a sua mão.
Consegui que um médico viesse até o quarto e imediatamente
ela foi transferida para o CTI em estado grave. Antes disso acontecer,
ela segurou minha mão e disse: — Obrigada.
Na madrugada seguinte ela
faleceu. Eu nunca mais consegui me recuperar. Ela era a pessoa mais importante
de minha vida. A única que me aceitava do jeito que eu era e com
quem eu podia ser eu mesma. Alguns dias depois de seu sepultamento, comecei
com minhas primeiras crises, que duravam cerca de quinze a vinte minutos
e que pareciam intermináveis. E normalmente eram precedidas por
um mesmo sonho. A cena se passava em um quarto bastante iluminado. Eu sempre
ficava em um canto, observando o que estava por acontecer. Uma moça
muito bonita, arrumando seus cabelos e, tão entretida em sua tarefa,
nunca podia perceber a entrada de um homem estranho, forte e robusto. Ele
pegava a moça por seus cabelos, a carregava para a cama e começava
a deferir golpes em seu peito com uma adaga dourada. Em pouco tempo a moça
estava morta e, então, surgia um segundo homem carregando uma mala.
A moça era cortada aos pedaços, colocada no interior da mala
e levada para o carro. Em quanto eles partiam, eu escutava uma voz dizendo:
— Avise que estão me levando para paiol. Para o paiol..........
e a voz ia sumindo enquanto despertava apavorada, sem poder respirar, com
uma pressão no peito, uma dor, as pernas imóveis e sem forças
para sustentar o corpo.
Além destes fatos,
a falta de vontade de continuar a faculdade e de fazer qualquer coisa aumentava.
Tudo o que tinha acontecido ganhou força descomunal e precisava
encontrar uma forma de sair. O quadro depressivo foi se agravando e a terapia
parecia não surtir efeito. Foi preciso a intervenção
de um psiquiatra, e toneladas de remédios passaram a fazer parte
de minha rotina. O caso complicou, e o que parecia ser um surto, acabou
me levando para o pronto socorro de um hospital psiquiátrico. Consegui
me recuperar, em termos. Comecei a manifestar um quadro de fobia social
e pânico e a idéia de sair de casa me era aterradora. Dias
depois tive, se e que pode se chamar deste jeito, uma recaída. Encontrei
uma cartela de Gardenal, comprimido utilizado pela ex-namorada de meu irmão
em crises convulsivas. Tomei todos, sem pensar. Fui socorrida a tempo e
novo tratamento.
Quase ninguém ficou
sabendo do acontecido, mas tirando a família, as pessoas resolveram
se afastar. "Amigos" se poderia chamá-los assim. Estudantes de psicologia
podem ser bastante cruéis. Talvez por medo de que o mesmo ocorra
com eles. Tudo bem. E novamente fiquei sozinha. Continuei o tratamento
com os médicos e mantive a medicação por quase dois
anos, até me sentir forte o bastante para ficar sem ela. Chegava
em outro ponto crucial de minha vida. Estava com vinte e sete anos e precisava
decidir que caminho iria seguir. O que iria fazer e precisava agir logo.
Acabei optando pela, talvez, mais radical de todas as mudanças.....