O RELÓGIO DAS ÁGUAS |
FLAVIO GIMENEZ |
|
Alma gêmea
Da última vez que a vi, meu coração se aqueceu, meus olhos se turvaram, eu a vi desnuda como veio ao mundo.
Nada faria supor o novo encontro que tivemos naquele verão anos atrás, onde eu a magoei imensamente, sem piedade e sem olhar para trás.
Sou um crápula, reconheço. Os tempos me julgarão, Cérbero me aguarda com suas duas bocarras arreganhadas, tenho certeza.
Mas o tempo passa célere e eu me lembro de suas mãos aninhadas às minhas no doce natal de 80; seus olhos imensos de morena me cobriam de faíscas enquanto os fogos espocavam nos céus.
Mal tive tempo de tocá-la, as festas nos chamavam, ela me beijava sofregamente, seu corpo colado ao meu por horas.
Tinha deixado o outro a ver navios e nós olhávamos o horizonte cheio de sombras e pássaros noturnos, o mar fosforescendo de águas-vivas e de barbatanas de golfinhos.
Nos fitávamos e eu reconhecia naquele olhar seu primeiro fitar-me, seu primeiro sorriso em minha direção, eu e ela numa conformidade de destinos, eu sabia no que iria dar, um estuário de felicidade.
Eu sabia que tinha encontrado, pela primeira vez, minha alma gêmea.
Tinha certeza, desde o momento que a vi, que ela se misturava a mim em uma harmonia de fluidos e sons incorpóreos, bastava cerrar os olhos que vinha a dor de sentir a vida breve, assomando em golfadas.
Sou um crápula, eu sei. Todos me julguem, joguem as pedras, vamos! Nem Anúbis me ajudará com sua barca, serei esquecido no Estige, minha alma flutuará infame para sempre num silêncio merecido por eras!
Mas desde a primeira vez que a vi, eu sabia que não a veria mais, e de fato perdi seu cheiro perfumado, já não me lembro de sua pele aveludada, até seu calor sumiu nas trevas da memória.
E foi então que traí minha alma gêmea. E não me arrependo. |
|