Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 158 - 2ª quinzena de julho 2009
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

O IGARAPÉ DO INFERNO, 16
(Romance inédito)       

Durante anos não choveu. Oh, oh, tá espantado? Susto? Oh, oh, oh, esta é uma garrucha antiga, não funciona mais. Peça de museu. Como eu. Já vivi demais. Estou morrendo, ah, ah, ah. Muito aprendi com a lição da vida. Não tenho a quem deixar esta lição senão a você, a este gravador. Falo com as paredes, falo com um gravador? Você é um gravador, menino? Ah, ah, vê lá, muda a fita, ótimo, ótimo, você é perfeito, vou contratar você como meu ouvinte exclusivo, com bom salário... O quê? Se sou rico? Já fui, menino. Já fui muito rico. Como vê este apartamento velho não é de ouro. Você é ingênuo, meu menino, ingênuo e bobo. Vou te ensinar, bem que vou, vou te dizer umas coisas, sabe? Você vai ficar logo esperto, você não sabe com quem está falando, você vai ver. Tá com medo? Ah, ah, ah, mas que, sou apenas um velho, você é o neto que não tive. Viu como o chofer te tratou? Era o vovô com seu neto, todo mundo viu, tá? Ah. Ah.

Deixa eu te contar, deixa. Sim e sim. Aquela casa era cercada de chão de tabatinga. Tinha duas entradas: uma que dava para o igarapé, e era aquilo de se ver, bonita, imponente. A outra dava para a mata. Não havia nada plantado ali. Porque naquela terra não se pode plantar nada, sabe? As saúvas vêm tirando logo. Aquelas saúvas matavam tudo. Não. É impossível acabar de todo com as saúvas da Amazônia. Só bomba atômica. Você destrói um formigueiro aqui e ali e ao redor todos. Mas certa noite você ouve um crepitar de fogo: são elas, as filhasdaputas!, vorazes, saúvas em correição, vindas de qualquer lugar e já destruíram tudo, tudo tudo, todo o trabalho de um mês um ano, toda a comida que você esperava comer e todo o dinheiro que você esperava receber depois de trabalho. Uma merda! Ali você tem de virar índio. Que povo, aqueles índios!Eu, meu filho, já estou cansado e morro feliz, passei todos aqueles anos lutando, o povo que se trate de defender, é melhor, quebrei a cabeça durante todos esses anos todos – sabe? Político?! Fui deputado! – mas sim, sim, vamos à nossa estória que você está aqui para isso, e eu tirei você de seus cuidados, oh, que lá sua vida era melhor do que viver aqui nessa sala escura, cheirando a mofo e morte, onde vivo.

Pois foi assim mesmo que o digo, eu, o narrador.

Vou mais, sigo. Por muito tempo ainda tenho o que contar. A peripécia mal começou. Fique sossegado. Pois o melhor ainda está por vir.

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