Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 20, 31/03/2015

PIANÓPOLIS

            Sonhei que caminhava pelas ruas de uma cidade chamada Pianópolis. Era uma cidade colonial, mergulhada entre montanhas, com uma ponte em arco sobre o ribeirão e calçadas com pedras capistranas. Os casarões brancos, de janelas azuis conservam lampiões que se acendem à noite. Por todo lado, há som de pianos, sombras de cisnes, harmonia de astros. Pautas, claves, colcheias, escalas, notas suaves e fortes vagam pelos ares.

            Num recanto, perto do chafariz, um homem de fraque, dedilha ora Mozart, ora Chopin, ora Beethoven. Balança o corpo. O piano parece vivo. Animal trêmulo, martelado com a força das mãos e dos pedais. Navio no mais assombrado dos oceanos.

            Daquela casa grande, vem a música galante de Chiquinha Gonzaga. Amo essa compositora, mulher de talento, determinação e coragem que se destacou na história da cultura brasileira. Chiquinha lutou pelas liberdades no país, foi abolicionista fervorosa, enfrentou opressões, rebelou-se, abandonou casamento e filhos por suas paixões, sendo a maior delas a música. No meio de desilusões, condenações e desgostos, sobreviveu com unhas e dentes com o que sabia fazer: tocar piano, criar beleza em forma de melodia.

            Aproximo-me da janela. Vejo a cabeleira de cachos castanhos presos num laço de fita. É ela, Chiquinha. Tenho certeza. Sentada de frente para o piano de cauda preto, a saia longa de tafetá vermelho.

            Primeiro ela toca “Lua Branca”, modinha misteriosa que canta os fulgores e o encanto da lua. Que implora à lua do céu a compaixão e a cura do coração: “Essa amargura de meu peito/ Oh! Vem, arranca.”

            Depois, meneando os quadris e o tronco com graça, Chiquinha tange a polca “Flor Amorosa”, que fala da rosa orgulhosa, sensitiva, que tem prazer em ser beijada porque é flor. Enquanto ouço, a rua fica tomada por um odor de resedá.

            De repente, Chiquinha me vê por um espelho da parede. Sorri, brejeira. Começa a tocar o célebre tango “Corta-jaca”, o mesmo daquele escândalo político que envolveu a primeira dama, Dona Nair de Teffé, esposa do Presidente Hermes da Fonseca. Dona Nair, diante da mais fina elite e dos diplomatas, executou os “requebros da suprema perfeição” do Corta-jaca. Aquela dança selvagem, sensual, irmã do batuque, do cateretê e do samba penetrou o Salão Amarelo do Palácio do Catete. Foi a alforria da música popular brasileira.

            Continuo em sonho meu passeio. Mais sinfonias, mais óperas, mais silêncios, ritmos e compassos. Mistura de elementos, sucessão de estações. Acordes e acordos de alma e corpo. Os timbres variam entre sono, alegrias e lamentações, que relembram antigos cravos e cítaras.

            Maestro e maestrina regem a música das esferas em Pianópolis.

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