EPHEMERDAS, por GLAUCO MATTOSO
GLAUCO MATTOSO é poeta, auctor de mais de cinco mil sonnettos. Actualmente não compõe mais nesse molde, mas ainda practica outras estrophações.
Para informações sobre a orthographia que adopta, suggere-se accessar:
http://correctororthographico.blogspot.com.br
Coluna 06
FEVEREIRO/2015
DELIRIOS MOMESCOS
No livro A VACCA E O HIPPOGRYPHO, Mario Quintana diz textualmente: "Ja ouvi dizer que as tribus primitivas vazavam os olhos dos poetas... Tambem deviam ser assim os olhos dos Prophetas porque a sua luz não era deste mundo. E aos homens assustava-os a belleza e a verdade." Não por acaso a citação evoca dois nomes gregos, Homero e Tiresias. E ja que tractamos de evocações, permitto-me outras associações de idéas neste periodo dionysiaco, propicio a phantasias desmascaradas.
Em diversas culturas (não apenas as primitivas, como dizia Quintana) a figura do poeta se confundia com a do bobo da corte, mixto de palhaço, cantor e contador de anecdotas. Quando Sansão, ja indefeso e cegado pelos philisteus, foi levado a exhibir-se nos festejos publicos, ficou explicito que deveria "brincar" para divertir a platéa. Ou seja: expor-se ao ridiculo pela propria cegueira. Si a desgraça alheia pode ser um comico espectaculo, tambem pode inspirar orgasticas e orgiacas phantasias. Pensemos no sadomasochismo como fertil palco para papeis e trajes typicos. Como numa bacchanal carnavalesca, cada participante personifica uma tara ou um fetiche, todos devidamente vestidos... ou despidos. Ao couro da bota sadica corresponde o couro da venda masochista. Ao chicote do dominador corresponde a algema do escravo. E assim por deante.
No caso dos cegos, ou mais precisamente dos cegados, seja por obra humana ou... sobrehumana, o individuo subhumanizado não está usando a venda temporariamente, dahi o aspecto mais fascinante da carnavalização, por assim dizer, da cegueira. Mais que punição ao prisioneiro, mais que a disciplina do escravo nos dominios dum clube SM, a cegueira representa diversão ante a diversidade, perversão ante a perversidade.
Menciono dois episodios, um que me foi contado, outro que vivenciei. Um joven escriptor cearense relatou-me que, ao desembarcar na rodoviaria de Fortaleza, notou que um cego agguardava adjuda para attravessar a rua e dispoz-se a conduzil-o. O cego, aggradescido, confessou que nem sempre encontrava pessoas tão solidarias. E desabbafou que ja fora cercado por malandros que o despiram, jogaram-no ao chão e fizeram-no rolar na areia da praia. Quanto a mim, fui levado certa vez, por um grupo de fanzineiros, a um estudio photographico, onde me fizeram posar com "cara de soffrimento" e "cara de gozo", ora revirando os olhos para cyma, como si implorasse aos céus, ora mostrando a lingua como si babasse de extase. Fizeram-me de perfeito bobo, não da corte, mas do corte, ja que as photos accabaram deschartadas da materia a ser editada, que sahiu bem differente da pauta original, para minha decepção... ou allivio, talvez.
Quando pesquisei a poesia de Baudelaire, magistralmente traduzida pelo recemfallescido Ivan Junqueira, achei um sonnetto com o qual me identifico e que tem a ver com a posição rastejante do caso cearense e com meu olhar supplicante captado pelas cameras dos zineiros. Approveito o clima pantomimico de fevereiro para transcrever o sonnetto francez, accompanhado dum motte glosado por mim e de outro sonnetto, este allusivo à phrase de Quintana supracitada. Vamos ver, ou melhor, vejam vocês si os poetas interpretam, de facto, as hallucinações dos foliões, ou si divaguei e extrapolei demais, enclausurado em casa emquanto a farra come solta la fora.
OS CEGOS [traducção de Ivan Junqueira]
Contempla-os, ó minha alma; elles são pavorosos!
Eguaes aos mannequins, grottescos, singulares,
Somnambulos talvez, terríveis si os olhares,
Lançando não sei onde os globos tenebrosos!
Suas pupillas, onde ardeu a luz divina,
Como si olhassem à distancia, estão fincadas
No céu; e não se vê jamais sobre as calçadas
Si um delles a sonhar sua cabeça inclina.
Cruzam assim o eterno escuro que os invade,
Esse irmão do silencio infinito. Ó cidade!
Emquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu,
Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo,
Olha! tambem me arrasto! e, mais do que elles pasmo,
Digo: que buscam estes cegos ver no Céu?
LES AVEUGLES [original de Baudelaire]
Contemple-les, mon âme!; ils sont vraiment affreux!
Pareils aux mannequins; vaguement ridicules;
Terribles, singuliers comme les somnambules;
Dardant on ne sait où leurs globes ténébreux.
Leurs yeux, d'où la divine étincelle est partie,
Comme s'ils regardaient au loin, restent levés
Au ciel; on ne les voit jamais vers les pavés
Pencher rêveusement leur tête appesantie.
Ils traversent ainsi le noir illimité,
Ce frère du silence éternel. Ô cité!
Pendant qu'autour de nous tu chantes, ris et beugles,
Éprise du plaisir jusqu'à l'atrocité,
Vois! Je me traîne aussi! Mais, plus qu'eux hébété,
Je dis: Que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles?
MOTTE E GLOSA DE GLAUCO MATTOSO
Baudelaire enxerga o cego
rastejante, e o povo rindo.
Do sonnetto um termo eu pego:
quem não vê quasi "rasteja".
Tanto quanto outrem que veja,
Baudelaire enxerga o cego
degradado, o que eu não nego.
Soffro assim, ja que, do lindo
panorama usufruindo,
quem me advista acha mottejo
si aos mais chatos pés me vejo
rastejante, e o povo rindo.
SONNETTO DESLUSTROSO [Glauco Mattoso]
Quintana diz que as tribus de outras eras
vazavam do poeta os olhos sãos
de modo a que enxergasse só os desvãos
que estão entre as verdades e as chimeras.
Mas hoje, o que é mentira e o que é, deveras,
na mente confundimos: nem pagãos,
nem crentes ousariam pôr as mãos
na jaula, a ver si estão vivas as feras.
Os cegos, ora inuteis como vates,
só servem hoje em dia para officio
bem menos importante: o de engraxates.
Rarissimos aquelles cujo vicio
secreto seja, alem de engraxar gratis,
dizer que usam a lingua, como eu disse-o.