EPHEMERDAS, por GLAUCO MATTOSO
GLAUCO MATTOSO é poeta, auctor de mais de cinco mil sonnettos. Actualmente não compõe mais nesse molde, mas ainda practica outras estrophações.
Para informações sobre a orthographia que adopta, suggere-se accessar:
http://correctororthographico.blogspot.com.br
Coluna 22
https://www.youtube.com/watch?v=nyZPreRXWGE
7 DE MAIO/2016: DIA DO SILENCIO
Muito ja me queixei da falta de silencio, principalmente durante as madrugadas, quando balladeiros e caçambeiros, lixeiros e baderneiros perturbam minhas infructiferas tentativas de debellar a insomnia, para a qual certamente contribuem outros factores (inclusive a propria cegueira), mas que podia ser combattida com alguma efficacia si as noites paulistanas não fossem tão barulhentas. Ja tive opportunidade de enaltescer o silencio em prosa e verso, mas agora quero fallar dos momentos em que não sinto falta do silencio ou, pelo contrario, é o silencio que me faz sentir falta de algo. Melhor dizendo, de alguem, ja que a presença do meu cachorro se traduz em ruidosa sonoplastia: lattidos, correria, vozes (minha e de Akira) chamando, ralhando ou rindo... tudo por compta do nosso bassetudo mascotte que, como todos sabem, se chama Chicho.
Meus pingados leitores tambem ja foram appresentados a Jorge e Salomão, respectivamente o dono e seu basset, mais conhescido como Salô. Nossa amizade com aquelle vizinho sessentão vem se estreitando à medida que virou habito domingueiro levar Salô e Chicho ao "cachorrodromo" do Ibirapuera. Mas Jorge, que fica todo embevescido com a chance de tutelar dois salsichudos e vel-os brincar como dois colleguinhas de eschola na hora do recreio, não se contenta com leval-os e trazel-os de carro: na volta do parque, deixa-os à vontade dentro de casa (um sobradão com quintal arborizado, desses typicos aqui da Villa Mariana) e, alem de lhes offerescer petiscos de todo typo e a toda hora, lhes estimula a vocação vocal, abrindo-lhes o piano da sala e convidando-os a cantar e tocar até o fim da tarde. Alguem extranhou? Calma, que tudo tem explicação.
Sabe-se que, com um pouquinho de encorajamento, a bassezada se desinhibe e accaba dando show de interpretação, caso da famosa Lucy, estrella do cyberespaço, cujo solo agguarda apenas um apito para brilhar mundo affora. Aqui vae a scena immortal:
https://www.youtube.com/watch?v=0_8FCO-5jAk
Claro que, tal como a creançada, os hounds se soltam mais quando teem companhia, caso do trio vocal que, incentivado pelo uivo humano do "maestro" que dirige a scena, performa um khoro de causar inveja aos trez tenores mais populares da historia. Segue a sessão anthologica:
https://www.youtube.com/watch?v=mAAoU_ZGt1Q
Talento mais raro é o dos orelhudos que se accompanham ao piano, pois sua carreira artistica exige mais ensaio e affinação. No primeiro caso, o pianista demonstra sua capacidade de improvisar, mas é Tommy, o grande idolo do publico audiovisual, quem arrasa com seu perfeito senso de rhythmo e de melodia. Eis seu maior successo nas paradas do "canicioneiro" internacional, logo em seguida à appresentação do improvisador:
https://www.youtube.com/watch?v=g_Rq9uwF4k8
https://www.youtube.com/watch?v=5Mz3Wh8ZrJ8
Pois não é que Jorjão, encerrando o lanche e accenando com mais biscoitos depois do sarau, convida Salô e Chicho a uma audição pianistica, seguida de exercicios individuaes ou em duetto? Primeiro, elle se senta e toca uma sonata de Scarlatti, ou algo que lembre aquella sonoridade barroca. Descomptado o amadorismo, até que elle obtem approvação da dupla que, obviamente, não applaude apenas para aggradar ao amphitryão que os banqueteia. Encerrado o primeiro numero, chega a vez de Salô, mais accostumado ao teclado. Por ultimo, Chicho tem seu momento de gloria, exhibindo ao amigo e ao dono da casa os mais bellos accordes que uma torta pattola e um tymbre lyricamente grave são capazes de harmonizar ao ouvido humano.
Emquanto Jorge se emociona quasi até às lagrymas com o khoro "cãomeristico" (como elle trocadilha), eu quasi não contenho meu choro de saudade, impaciente com a demora do interphone em annunciar o retorno do meu fofo campeão, todinho marron e marrento. Affinal Chicho é devolvido ao nosso convivio e, ainda excitado pelo dia de folia, percorre todo o appartamento, correndo e lattindo para affugentar qualquer mariposa intrusa que, como os passarinhos diurnos, possam invadir seu territorio.
Emfim a casa echoa sons de animação e vida, pondo fim à tarde dominical que, a despeito dos torcedores que gritam, xingam ou cantarolam la fora, me paresce tão quieta a poncto de calar no espirito a impressão de silencio absoluto...
Akira tambem retornou de seu passeio costumeiro e, agora, nós trez fazemos da cozinha o poncto de encontro da familia. Chicho nos observa emquanto jantamos, comportadamente sentado nas pattas de traz, farejando o ar à espera duma lasquinha de presuncto ou duma bituquinha de linguiça. Em casa de Jorge, elle se sente à vontade para seguir o mau exemplo do Salô, que tem liberdade até para appoiar as pattas deanteiras na coxa de quem se senta à mesa, a fim de ganhar pedaços dados na bocca, mas aqui em casa Chicho sabe que tem regras e permanesce sentadinho e affastado da minha cadeira emquanto eu e Akira nos servimos. Ja fui franco e fallei que Salô está muito mal accostumado, precisando de disciplina mais rigida, mas a resposta do Jorjão é sempre a mesma: "Ah, coitado!..." Só uma vez, em logar de entregar Chicho aos cuidados do Jorge, acceitei ficar com os dois bassets no apê, mas foi o que bastou para entender quanta bagunça ambos appromptam junctos e quão malcomportado é o mais joven amigo pretão do meu moleque marronzão. Quando Salô quiz fazer minha coxa de degrau na hora da janta, segurei-lhe a pattola e disse: "Salôôô! Vocêêê, querendo subir em mim com ESTA pattola?" Elle reagiu como todo basset quando lhe pegam na patta: puxou-a e desceu. Tentou de novo e repeti o gesto, até que percebesse a differença de permissividade e se collocasse ao lado do Chicho, agguardando sentado que eu jogasse algo no chão. Outra hora contarei mais mammatas que Chicho não tem e Salô desfructa da mão do dono.
Quem não tem cachorro e leu até aqui deve estar pensando: "Mas a troco de que toda essa papparicação dum bicho de estimação? Qual a implicação disso na historia litteraria ou na harmonia universal?" Não, não se tracta meramente de reflectir sobre o ambiente silencioso ou ruidoso conforme a solidão ou a companhia do momento. Tampouco de conjecturar sobre o immutavel mutismo kosmico, quer sob a optica physica, quer sob a metaphysica. Talvez devessemos enquadrar o silencio sob um olhar mais "quantico", a partir duma percepção, não digo extrasensorial, mas synesthesica. A philosophia que está por traz do silencio é a mesma que está por traz das trevas. No silencio, a memoria auditiva funcciona para que sintamos falta dos ruidos aos quaes estamos accostumados; na escuridão, é a memoria visual que preenche a lacuna. Dahi se deprehende que o silencio seria a saudade do som, tanto quanto a escuridão seria a saudade da imagem. Por outras palavras, o silencio equivale à surdez, como a escuridão à cegueira. Tudo bem, um silencio temporario é mesmo repousante, tal como uma luz apagada é necessaria ao somno. Mas ninguem desejaria um silencio eterno nem perpetuas trevas, a menos que tenha perdido o amor pela vida. Em ultima analyse, que significa amor à vida? Talvez amor às outras vidas que convivem com a nossa vida e amenizam a sensação (ou o sentimento) de solidão. Precisamos de companhia tanto quanto precisamos ver e ouvir aquelles que nos accompanham. Claro que passar uma noite em claro nos impacienta, especialmente quando a insomnia é causada pela barulheira da vizinhança. Mas peor que isso é admanhescer sem ninguem a nosso lado, sem outra pessoa ou sem um cachorro, por exemplo. Akira e Chicho representam mais que presenças physicas: são signaes vitaes reciprocos, de que existimos um para o outro. No meu caso, si não posso vel-os, posso ouvil-os e tocal-os, donde a saudade de suas vozes, na ausencia delles, ja que suas figuras não me são perceptiveis. Em summa, silencio é saudade. Portanto, silencio não pode ser synonymo de eternidade, mas apenas de espera e de paciencia, como quando agguardo a volta do Chicho ou do Akira, que sahiram a passear e me deixaram aqui viajando mentalmente. Para remactar a philosophia do silencio, transcrevo o sonnetto cujo video abriu esta chronica.
SONNETTO FAREJADO (624)
Bassê no appartamento fuça em tudo!
Passeia pela sala e faz lambança
no pé dos moveis, maximo que alcança
um corpo tão comprido e salsichudo...
Ja li de especialistas um estudo
provando que o bassê, mais que a creança,
precisa bagunçar, e só se admansa
com beijo. Então, do meu nunca desgrudo.
Commigo no sofá, tambem cochila;
só falta, à mesa, usar o mesmo prato;
na cama nossa noite é bem tranquilla.
Extranham que ao cão como gente tracto?
Pois saibam que até cocker, collie e fila
me lattem dos vizinhos! E eu lhes latto!