Raquel Naveira
Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.
Coluna semanal de Raquel Naveira
– Nº 7, 26/11/2014
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GATO DE BOTAS
– Toda vez que meu gato sobe de mansinho na cama e suavemente se aninha em meu peito, os olhos amarelos me fitando com inteligência e ternura, penso que ele se parece muito com o Gato de Botas do conto de fadas. Imagino que ele me diz:
Não fique triste por ter recebido de herança da vida um gato. É certo que aquele moleiro deixou para o filho mais velho o moinho com o qual ele poderia fazer farinha; para o do meio, um burro para o serviço pesado de transportar cargas e para o caçula, um gato. Mas era um gato mágico, de uma esfera superior, de um nível mais elevado da consciência, como eu. Vá, junte suas forças, compre-me um par de botas e você não vai se arrepender por ter me acolhido quando caí de uma janela do edifício Copan e me dado comida e carinho.
Nesse ponto, ele salta da cama e passeia pelo apartamento ronronando, arrepiado, todo cheio de uma energia negativa que estava em mim, que ele já sugou e transformou em sentimento e compreensão.
O Gato de Botas saiu pelo mundo, com suas botas de couro pretas, com suas artimanhas. Conseguiu convencer a aldeia e o rei de que pertencia ao fidalgo Marquês de Carabás. O rei ficou encantado com as notícias sobre o Marquês: moço fino, educado, dono de propriedades, corajoso a ponto de acabar com o ogro gigante que ameaçava o reino. Deu assim, como recompensa, a mão de sua filha em casamento ao jovem.
Personagem que ironizava a corte francesa antes da Revolução, o Gato de Botas foi uma espécie de publicitário, difundindo e promovendo com técnicas de comunicação apurada as virtudes e os feitos de sua marca, de sua criação: o Marquês de Carabás. Os campos cultivados de trigo, o palácio no meio do bosque, o gigante reduzido a um rato e devorado, pela narrativa e astúcia do gato, foram conquistas atribuídas ao tal Marquês. Com imagens, ambiguidade e dando ordens determinadas e imperativas, o gato potencializou o valor de um produto, persuadindo o rei a comprar uma ideia: a união da princesa com o idealizado Marquês de Carabás. O Marquês passou a ser um reflexo do próprio rei: de sua juventude distante, de suas mais altas aspirações.
Lá vem de novo, sinuoso, o meu gato. Ele sabe quando preciso dele e fica por perto, esfinge enigmática. Dessa vez posso ouvi-lo nitidamente:
– Sou seu Gato de Botas. Ainda vou assistir a festas, celebrações, vitórias com pompa. Estou trabalhando por aí, pelejando pelo alto dos telhados, miando para a lua, planejando, sonhando, fazendo propaganda de seus dons, de sua arte. Logo, logo você receberá uma coroa e eu um novo par de botas com cordões encarnados e preciosos diamantes. Seremos felizes. Tenha calma, paciência, perseverança, autodomínio, confie no meu instinto caçador, minha dona. Observe como vivo apenas um dia de cada vez e com silêncio e elegância. Não queira desvendar mistérios antes da hora.
Passo a mão sobre seu pelo lustroso. Agradeço sua presença. Ele é meu Gato de Botas. Tenho fé.
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