Raquel Naveira
Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.
Coluna semanal de Raquel Naveira
– Nº 8, 02/12/2014
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ANGÉLICA
Gosto de enfeitar a sala com um buquê de angélicas. Que aroma suave e agradável se espalha pelo ambiente. São belas as hastes de folhas longas, com cachos de flores brancas, cerosas, pequeninos bulbos que florescem no verão e vão até o final do outono. E estamos no outono, numa manhã de outono.
Conheci a angélica aqui, numa banca de flores perto da Avenida Angélica e ela se tornou o símbolo desse novo tempo em São Paulo.
Caminho por essas ruas todas e percebo a presença de três mulheres fortes que fundaram este bairro: Angélica, Maria Antônia e Veridiana. Três damas paulistanas do finzinho do século dezenove que provaram o quanto as mulheres conduziam destinos; como marcaram com suas personalidades, decisões e atuações os rumos da cidade.
Maria Antônia da Silva Ramos, filha do Barão de Antonina, possuía nessas imediações uma chácara com pomar e pasto de cavalos. Vinha acompanhada por seus escravos para passeios em meio a laranjeiras e moitas de hibiscos. Vendeu depois a área ao reverendo Chamberlain, que construiu o prédio antigo da Universidade Mackenzie, que foi a porta de minha entrada nesta metrópole.
Essa rua ficou famosa por ter sido palco de uma luta de estudantes da esquerda, da USP e da direita, do Mackenzie, no começo da ditadura militar. Uma verdadeira batalha campal entre os estudantes eclodiu na rua durante dois dias, com ovos, pedras, paus, tiros e resultando na morte de um estudante.
Numa noite de junho, comprovando esse espírito bélico da rua, vi-me cercada no meio dos manifestantes contra o reajuste da tarifa do transporte coletivo. Rojões, bombas, bolas de borracha, gás lacrimogênio, a tropa de choque, o zumbido de um helicóptero. Com o coração aos saltos, eu, tão pacífica, interiorana, criada em redoma de vidro, entendi de repente que vivia agora no olho do furacão. Senti um misto de angústia e de orgulho por participar como nunca da cena, do turbilhão da história. Certeza de trazer agora na lembrança limalhas de ferro e fogo do asfalto da Maria Antônia.
A rua Dona Veridiana que leva ao metrô e ao borburinho do pátio da Igreja Santa Cecília é uma referência a Veridiana Valéria da Silva Prado, aristocrata proprietária de terras, intelectual que influiu ativamente na vida cultural, filha do barão de Iguape, poderoso cafeicultor e comerciante de açúcar.
Casou-se muito nova com seu tio, Martinho, bem mais velho que ela e tiveram seis filhos. Ousada para a época, separou-se do marido e construiu para si uma mansão com jardins e campo de futebol. Reunia em seus salões artistas, políticos, cientistas. Patrocinava exposições de arte e companhias teatrais. Mesmo sob constantes ameaças de morte, andava sozinha com botas e calças de amazona pela região.
E, finalmente, entramos na Avenida Angélica, homenagem a Maria Angélica de Sousa Queirós Aguiar de Barros, filha do Barão Souza Aguiar, senador do Império. Era dona de toda a chácara das Palmeiras, onde erguera um palácio com duas alas separadas por uma torre e lagos onde nadavam carpas e cisnes. Dedicava-se a um trabalho de caridade junto à Associação São Vicente de Paulo, nome de outra rua, que dá no shopping.
Três mulheres de uma época distante e também difícil: Angélica, Maria Antônia e Veridiana. Palmilho como elas os mesmos pedaços de chão. Há nuvens negras de tempestade sobre os arranha-céus cinzentos e a todo momento tudo muda, cai ao chão, esfacela-se, apodrece, restaura-se, constrói-se, como um mapa decadente que nunca tem fim, apagando-se e desenhando-se continuamente.
Nesta manhã de outono, de ciclo de vida perene, eu, mulher, dona de mim mesma, fundadora de mundos, atravessando entre dardos pelo tempo e pelas ruas, trouxe para meu lar uma cesta de frutas e um ramo perfumado de angélicas.
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