Coluna de Rogel Samuel 
Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.
Site pessoal: http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/

Nº 163 - 1ª quinzena de outubro 2009
(atualização quinzenal, dias 10 e 25)

O advogado da História

1. Quando eu era menino tive um singular professor no curso ginasial.
Era o primeiro dia de aula. Turma cheia. Inquieta. Violenta. Moleques dispostos a bagunçar e brigar. Um perigo.
Então entrou em sala de aula o professor. Era atarracado, forte, aparência militar.
Não direi seu nome, seus filhos e netos devem estar em Manaus.
Começo da aula. O professor avaliava os alunos. Os alunos olhavam, desafiavam, tensos, o professor.
Algo secreto pairava no ar. Algo suspeito, uma bomba ia explodir.
O professor sério, falava, explicava o curso que ia dar. Nós nos entreolhávamos, ouviam-se risinhos sufocados. O professor começou a sentir-se mal, respirava fundo, com dificuldade.
Foi quando o professor voltou-se para o quadro-negro e começou a escrever. Escrevia rápido, a letra era muito bem feita, alinhada, de calígrafo. Então ele recebeu a primeira bolinha de papel.
Voltou-se para nós, branco, os lábios tremiam. Continuou a escrever, novas bolhinhas. Voltou-se para nós e disse, tinha a voz trêmula:
– Eu quero avisar uma coisa: eu não reprovo, não ponho aluno pra fora de sala, não chamo a diretora...
E abrindo o paletó, onde deixou aparecer um revólver:
– Eu quebro a cara de quem atrapalhar a aula!

2. Outra professora, excelente, era nossa professora de música. Dava aula regendo:
– Dó-ó! – Dividia os tempos, cantando.
Um dia um gaiato conseguiu por um gato no gavetão de sua mesa de tampa. Quando ela levantou a tampa e abriu a mesa o gato pulou sobre ela e ela desmaiou. “Estará morta?” Os alunos de apavoraram. O diretor, espírita, dava-lhe uns passes...

3. Nosso professor de ciências era magrinho, baixinho, mas muito brabo. Um dia, atravessando a rua, quase foi atropelado:
– Idiota! Gritou-lhe o chofer.
Ele tirou o revólver e deu vários tiros no carro. Não matou ninguém.
Estando em sala de aula enfureceu-se com o barulho dos alunos e deu um murro na mesa: seu anel de formatura com vários diamantes espatifou-se. Voaram brilhantes por todos os lados. Saímos catando pelo chão, para ele.
Já bem velhinho o encontrei num shopping no Rio de Janeiro.

4. Nosso professor de história, outro advogado, comunista. Vestia um impecável terno branco que tirava diante de nós:
– Na aula passada . – (e acendia o cigarro)... nós nos reportávamos à civilização bizantina...
Falava pausado, mas ininterruptamente, com voz nasal. Sua prova era oral: fazia só três perguntas, durante a chamada. Elegante no vestir, elegante no falar, sua aula (vejo hoje) era um desenrolar da História aos nossos olhos. A História se manifestava ali, na sua dialética marxista. O mais incrível era que ninguém o perturbava. Não usava nenhum livro didático, nós tínhamos de tomar as notas do que falava para responder às provas. Não era decorar, mas entender a História, com suas causas e conseqüências.
Nosso professor era um advogado. Um advogado da História.

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