Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 30, 18/06/2015

TREM

Nasci em outra civilização. Tenho alma ferroviária. Minha cidade era entrecortada pelos trilhos da Noroeste do Brasil. Seu traçado ia de Bauru, São Paulo, até Corumbá, fazendo integração com a Bolívia. O Trem do Pantanal ou Trem da Morte levava passageiros a Santa Cruz de la Sierra. Um dia, de repente, removeram os trilhos dos cruzamentos do centro comercial. Restou apenas uma linha turística que faz o trajeto Campo Grande, Aquidauana e Miranda.

Vivi o apogeu da Noroeste. O trem penetrou no meu imaginário, serpente de ferro rangendo. Lembro-me do saguão da estação. O relógio com seu enorme quadrante marcando o tráfego dos trens, organizando as rotas, nivelando as vidas e os destinos de forma implacável. O embarque era o ponto de partida; a fronteira, uma direção possível. As pessoas carregavam ponchos coloridos, pacotes, chapéus, mantas, cestas, baús, enfim, todos os bens e objetos indispensáveis para a travessia americana. No coração e na mente levavam o equipamento mental do passado: as forças, as lembranças, as trôpegas esperanças. No percurso eram distraídas pela paisagem de camalotes, pelos charcos, pelos bichos que saltavam espavoridos à passagem do monstro modorrento. Era um trem esquálido, esqueleto de aço chacoalhando, compondo um réquiem para algum pássaro morto. Era um trem fantasma que se diluía na bruma com sua carga preciosa de história e poesia.

Quantas vezes ali, na plataforma, observando o borburinho, as expressões dos rostos, as despedidas, as mãos em gestos de adeus, tive visões envolvendo o trem. A sensação de perdê-lo me sufocava. Para onde eu queria ir, afinal? Como encontrar meu caminho, rasgar decretos, retirar máscaras, apostar num bilhete, escapar da rotina? Aí eu embarcava no trem em fuga, sem bagagem, sem peso morto, sem proteção. Chorava nervosa, impotente, diante de um temor, um fracasso inexplicável que apitava no meu peito.

À minha volta os viajantes pareciam preocupados, mas decididos, cheios de compromisso e certeza do lugar para onde iam. Quando entravam nos vagões, os olhos ganhavam uma cor de chumbo, entranhados de tédio e aventura. Infelizes os que tomavam trens e mergulhavam nas primeiras luzes da noite.

Muitos poetas têm alma ferroviária como a minha. Manoel de Barros escapou pelas frinchas, quando explicou que quem anda no trilho é trem de ferro. Ele era água entre as pedras. Já Adélia Prado, que viveu numa casa alaranjada à beira dos trilhos, disse que o trem de ferro era uma coisa mecânica, mas que atravessou sua vida, transformando-se em sentimento. Bandeira transcreveu o barulho do trem em versos ritmados: café com pão, café com pão, café com pão...

Tudo isso para dizer que amadureci a duras penas, tomei consciência do que era necessário e parti naquele trem. Ele não descarrilou, apesar de alguns problemas difíceis de resolver. Não se chocou contra os montes, embora eu tenha combatido alguns gigantes. Não despencou nos abismos, nem afundou nas cascatas de espumas. Desviou de flores e cavernas. É o mesmo trem da estação de minha infância, de meus sonhos e inquietações. Permaneço firme no comboio, confiante no controle do chefe da estação. Não sei quantas milhas faltam.

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