EPHEMERDAS, por GLAUCO MATTOSO

GLAUCO MATTOSO é poeta, auctor de mais de cinco mil sonnettos. Actualmente não compõe mais nesse molde, mas ainda practica outras estrophações.
Para informações sobre a orthographia que adopta, suggere-se accessar:

http://correctororthographico.blogspot.com.br

Coluna 08

ABRIL/2015

DESSEDENTAMENTO SEM DESSALINIZAÇÃO

O dia mundial da agua (22 de março) deixou de ser mera data symbolica para se sobresahir às demais commemorações do mez passado, tamanha a repercussão das noticias sobre a crise hydrica. Em abril a data mais allusiva ao caso teria de ser, obviamente, o dia do indio, marcado para 19, ja que ninguem deu mais valor às aguas brazileiras que o primitivo habitante de Pindorama. E quanto aos caras pallidas? E quanto aos emboabas?

A poesia dos brancos até que tractou bastante das nossas doces reservas, como não poderia deixar de ser num paiz de correntes amazonicas e cataractas colossaes. Mas só no ultimo seculo os poetas começaram a notar que as fontes tenderiam a minguar. Emfim, a ficha demorou a cahir. Tenho um livro inedito, chamado CRITICA SYLLYRICA, no qual analyso, em forma de sonnetto, os sonnettos alheios, alguns delles thematizando nossos rios. Nas admostras, excolhidas a dedo, de Amadeu Amaral (sonnetto "Rios"), Belmiro Braga (sonnetto "Olhando o rio") e Hermes Fontes (sonnetto "Rio"), por exemplo, ainda prevalesce aquella imagem idyllica do caudaloso curso d'agua que evoca sentimentos nobres e desperta reminiscencias pessoaes. Ja nos meus sonnettos em que replico aos auctores (respectivamente os de numero 5186, 5193 e 5204), tracto de desmystificar a scena limpa e de introduzir no debatte as consequencias da predação humana, traduzida em lixo, exgotto e polluição industrial. A mesma attitude tomei quando parodiei a canção "Planeta agua", de Guilherme Arantes (brilhantemente entrevistado por Emmanuel Bomfim na radio Estadão), no sonnetto "Sobre um planeta mal molhado", que sahiu no livro CANCIONEIRO CARIOCA E BRAZILEIRO, mas agora cabe deslocar o foco a partir dessa emergencial perspectiva da pura e simples secca, ou da impura e complexa "crise hydrica", para usar a expressão em voga.

Ja não se tracta de protestar contra uma progressiva transformação da represa em retrete, do reservatorio em mictorio ou da bacia em... bacia! Tracta-se de cahir na real e questionar si as aguas dictas "servidas" ainda serão sufficientes para reutilização minimamente "potavel", ou, em portuguez claro, si ainda teremos mijo para mactar a sede, ou até quando. Antes o sal "purificado" da agua do mar dessalinizada que o sal "urificado" da agua do bar descarregada...

Para não chover no molhado, digo, reclamar da falta de chuva no "volume morto", deixo a discussão technica para os especialistas e me attenho ao affan poetico, que é minha praia cada vez mais impropria para banho. Abbaixo transcrevo o sonnetto parodico para Arantes, um madrigal e umas glosas ineditas, que entrarão em futuros volumes, ja não mais parametrados pela forma fixa do sonnetto, e sim da sextilha em decasyllabo e da decima em redondilha maior. Um urinario brinde a todos! Saude! Salve! Digo, salve-se quem puder!

            SONNETTO SOBRE UM PLANETA MAL MOLHADO [2988]

            Agua que a chuva empoça no telhado
            e cria o mosquitinho que nos picca...
            Agua que, mal brotando la da bicca,
            aqui ja chega suja, e a bebe o gado...

            Agua fedendo a lodo que, cagado
            no corrego, o empesteia e por la fica...
            Agua residual de quem fabrica
            venenos e agrotoxicos ao lado...

            Agua que a gente bebe da torneira,
            com cheiro de alga podre e que não serve
            siquer para lavar uma lixeira...

            Agua que, mesmo quando a gente ferve,
            nos sabe a mau sabor, que mal nos cheira,
            e irriga, no meu verso, o verme e a verve...

            MADRIGAL PLUVIAL

            Si chove, allaga tudo e causa o chaos.
            Si falta chuva, os niveis estão maus.

            Paresce a crise hydrica o dilemma
            do seculo: agua molle ou pedra dura?
            Concreto ou varzea verde? A gente rema
            mais contra a correnteza ou a natura
            nos pune com a secca? A pena extrema
            será bebermos mijo ou merda pura?

            Não falta um palpiteiro que assegura:
            exgotto se approveita, si tractado!
            Eu fico imaginando: que fartura
            de merda! Estamos salvos! Mero dado
            visivel e olfactivo é o da tinctura
            marron... Quanto ao sabor... será do aggrado!

            MOTTES GLOSADOS

            Agua agora se raciona
            até para tomar banho.

            Lavar rola, lavar conna,
            só no sabbado, e olhe la!
            Como a coisa feia está,
            agua agora se raciona.
            Ja pensou? Que porcalhona
            fica a gente! Nem me accanho
            mais si alguem vê monco ou ranho
            me excorrendo pela cara!
            Que fazer, si a aguinha é rara
            até para tomar banho?

            Que legal! Vae ser cafona
            manter limpa a minha bunda!
            Mesmo a rola estando immunda,
            agua agora se raciona!
            O fedor daquella zona
            corporal nada de extranho
            mais terá! Pretexto eu ganho
            si ter cheiro de gambá
            vou, pois agua faltará
            até para tomar banho!

            Approveite emquanto pode
            tomar banho demorado.

            Você, caso se incommode
            com cocô grudado ao rego,
            seu banhinho, no sossego,
            approveite emquanto pode!
            Ensaboe seu bigode
            devagar e, com cuidado,
            lave o penis ensebado!
            Amanhan, si a ducha secca,
            vel-o eu quero, de caneca,
            tomar banho demorado!

            A vantagem dessa crise
            é mais gente com chulé.

            Por favor, ninguem me advise
            que está secco outro riacho!
            Mas, pensando bem, eu acho
            a vantagem dessa crise...
            Si é meu fracco que me pise
            um rapaz que tenha pé
            chulepento, torço até
            para haver racionamento,
            pois, sem agua, o que eu enfrento
            é mais gente com chulé...

            Mais ninguem pode dizer
            de qual agua beberá.

            "Desta aqui não vou beber,
            nem daquella la, jamais!"
            Essas phrases, ou quetaes,
            mais ninguem pode dizer.
            Todos temos o dever
            de poupar agua: não dá
            para achar que em nosso cha
            não lavou alguem o pé.
            Quem mijou ja sabe até
            de qual agua beberá.

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