Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 14, 12/02/2015

MOÇA

          “Moça” é uma palavra mágica. Tem um efeito incrível sobre meu espírito. Lembro-me que aos quatorze anos, entrei numa farmácia e o rapaz me atendeu solícito:

          – Pois não, moça...

          Tremi. A moça era eu? Então eu não era mais uma menina? Já era reconhecida como moça? Como ele poderia saber que há pouco tivera a minha primeira menstruação? Que eu era agora cíclica, lunar? Que todo mês aquele fenômeno se repetiria: o plasma, o sumo, o mar vermelho entre minhas pernas de ser mamífero, fêmeo e quente? Que aquela placenta escoava como um fluxo de rio? Que eu era feita de uma substância líquida? Que minha existência era miserável e precária? Que minha consciência nada poderia fazer contra esse ritmo que me abatia? Que meu corpo se transformara numa máquina indiferente à minha vontade, imperfeito, complexo, purgando estrelas sanguíneas?

          Mas, no fundo, eu estava feliz, orgulhosa. “Moça” significava a possibilidade de ser mulher, de me tornar mãe. O desejo da maternidade pairava sobre mim, imenso. A maternidade pressentida se preparava nas minhas entranhas. Idealizava em mim a beleza de uma mãe que serve.

          “Moça” era também o sonho de me vestir de noiva, de tornar-me algo que ainda não atingira em minha virgindade, mas poderia ser. Amar seria ocasião sublime para amadurecer, exigência, escolha, chamado para longe. A realização da sexualidade difícil que me foi imposta pela natureza. Minha vocação era amar o amor, o amor de duas criaturas humanas, por muito tempo, pela vida afora, aprofundando cada vez mais a proteção, o auxílio mútuo. Tornar-me um mundo para o outro. Solidões que se saúdam, como escreveu Rilke.

          Tive medo, quase desfaleci sob as rendas e as flores amarelas de meu vestido de noiva. Depois representei como ninguém o papel de sedutora. Você foi o fiador dos meus sonhos. Não fugiu de mim, bem precioso. Rubi escarlate.

          Agarramo-nos um ao outro. Sou carne de sua carne. Você me alimenta com ervas da terra, me trata e me sustenta, enquanto caminhamos, Adão e Eva expulsos do paraíso, entre espinhos e abrolhos, comendo pão com suor. Meu desejo me impeliu a você. Fui dominada. Dei-lhe filhos em partos com dor. Crescemos e sofremos juntos. A cada perda, a cada plano interrompido, a cada inverno, a cada sensação de cerco, de que o destino quer nos tirar tudo, vem sempre o consolo:

          “ – Ainda sou moça. E ele me acha bonita.”

          Olho-me no espelhinho e passo batom.

          Aos poucos, porém, os diques se fecharam, útero e ovários esturricaram como frutas de cascas endurecidas, os cabelos estão brancos sob uma pátina de tinta castanha. Com os filhos adultos, a maternidade é uma grande recordação. Com a vinda das netas, sangrei gerações de Marias. Crio com plenitude íntima, dou à luz poemas e livros. Aproximamo-nos cada vez mais das noites que têm árvores e vento. Qual não foi minha surpresa, quando entrei numa farmácia e o rapaz do balcão me disse:

          – Pois não, moça...

____________

Colunas anteriores:
01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 12, 13

« Voltar colunistas