Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 33, 08/07/2015

MUSEU DO IPIRANGA

                 Todo museu é um lugar fascinante e misterioso. Quem gosta da vida, gosta do passado, ele é o presente que sobreviveu na memória humana, disse a romancista Marguerite Yourcenar. O Museu do Ipiranga ou Museu Paulista é o meu preferido. O palácio com ricos jardins, pousado num verde parque onde cantam sabiás e periquitos, erigido no local em que aconteceu o evento histórico da Independência do Brasil, guarda um poderoso laço afetivo com os que o visitam.

                 Lembro-me tão bem quando era criança e lá estive pela primeira vez, numa manhã fria e ensolarada, de boina e uniforme plissado cor-de-vinho com a professora e as colegas. A emoção, o impacto de ficar frente a frente com vultos anunciadores de antigos tempos.

                 A professora, que nos servia de guia, explicava: a escadaria do palácio representa o rio Tietê, ponto de partida dos bandeirantes rumo ao interior do país. Ao lado, esferas com águas dos rios desbravados. No saguão central, uma estátua de D. Pedro I em bronze, seguida das estátuas dos bandeirantes Borba Gato, Antônio Raposo, Fernão Dias. Botas, chapéus, coletes, bacamartes esculpidos na pedra. Subindo os degraus, o imenso quadro “Grito da Independência”, do pintor Pedro Américo. Cena fantástica: o riacho, os cavalos, os soldados em roupas de gala, penachos e espadas nos ares. A obra foi encomendada pela Família Real quando a mesma investia na construção do edifício. É romântica releitura. Os poucos soldados, na verdade, estavam montados em jumentos e mulas, vestidos em mangas de camisa. D. Pedro, dizem, não ostentava esse semblante de vitória, pois sentia dores de diarreia e cansaço. Mas o grito ecoou pelas margens e foi potente: “ – Independência ou Morte”.

                 Continuamos em fila pelos corredores: os móveis, as camas com dossel, as cômodas-papeleiras cheias de penas e tinteiros, as armas, as joias, as medalhas, os selos, as carruagens, as indumentárias. E nas pinturas das paredes, os olhos dos barões e das marquesas nos acompanhavam vívidos, úmidos.

                 Em nichos de vidro, coleções de retratos de família, as experiências aeronáuticas de Santos Dummont, as partituras das óperas de Carlos Gomes, os objetos de cerâmica do cotidiano dos índios e os moedores de café, que trituram eternamente os grãos negros desse universo de trabalho, sangue, sonhos e lutas.

                 Descemos até o subsolo da cripta, que abriga os restos mortais de D. Pedro I e suas esposas: Leopoldina e Amélia. Cadáveres colocados lado a lado em seus caixões, rodeados por quilos de granito. Essa sensação de luz da verdade e sombra da morte impregnou-se em mim, em minha visão do mundo e da História, desde aquela manhã.

                 Muito mais tarde, acompanhei com renovada emoção a notícia da exumação daqueles corpos por uma equipe composta de arqueólogos, médicos e físicos responsáveis pela análise dos despojos. De D. Pedro, o libertador soberano, homem de cabelos pretos e olhos brilhantes, contraditório, impulsivo, autoritário, ambicioso, grosseiro, generoso e sedutor, capaz de amar e odiar com volúpia e extremos; desse jovem estabanado, idealista, injusto e agressivo, desejoso de fazer o bem, que não acreditava em diferença racial, direto no relacionamento com os súditos. Enfim, desse imperador falho e humano, restaram as costelas quebradas que perfuraram seu coração, matando-o aos trinta e seis anos. De Leopoldina, arquiduquesa de Áustria, mulher obesa de bela face, culta, obrigada a conviver com um marido adúltero, criado em estrebarias, numa corte provinciana; dessa que foi humilhada, afrontada com más palavras, chutes e perturbações, mas que demonstrou grandeza de caráter; dessa que exigiu numa carta endereçada ao esposo a Independência, sobraram pedaços puídos da roupa de sua coroação e a faixa de Imperatriz do Brasil. E de Amélia de Leuchtenberg, bela e refinada como uma rosa fresca, que amava os bailes e o cerimonial francês, cativando a todos com afeto e atitudes firmes, veio a surpresa: estava intacta, múmia rescendendo a cânfora e mirra, segurando entre os dedos a cruz de prata.

                 O Museu do Ipiranga ficará fechado ainda por muitos anos. Há que se restaurar fissuras e brechas em sua estrutura. Lamento. Por enquanto, crianças e professores não andarão mais pelas alas, galerias e varandas. Vim menina aqui, pensei. Voltei meu rosto em direção ao sol. O palácio ficou para trás, luzindo, resplandecendo para sempre.

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