Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 35, 23/07/2015

CROCODILOS E JACARÉS

              Sonhei com crocodilos. Estava escuro. Havia lua. Entrei nas águas quentes, primevas. E eles me cercaram, forças inelutáveis. Os olhos brilhando como gemas de ovo cobertas às vezes pela albumina de uma membrana clara. Olhos faiscantes como lâmpadas. Pupilas de raios negros. Nadaram em volta de mim, boiando como nenúfares, balançando as caudas nas trevas, abrindo as goelas prontas para o assassínio.

              Tudo isso porque fiquei impressionada com o filme francês “Os olhos amarelos dos crocodilos”, inspirado num romance de Katherine Pantel. É a história de duas irmãs e suas relações conflituosas. Íris é bonita, sofisticada, rica. Leva vida fútil e luxuosa. Joséphine é intelectual, pesquisadora da Idade Média, abandonada pelo marido, às voltas com dificuldades financeiras. Durante um jantar, Íris diz a um amigo editor que está escrevendo um livro. Propõe então à irmã que ela escreva o romance em seu nome, em troca de dinheiro. Mas o filme, além das excelentes atuações das atrizes, é muito mais que isso. É sobre mentira, duplicidade, hipocrisia, traição, medo, ambição, infelicidade, falta de confiança, frustração, amizade, busca do amor. É sobre mundos subterrâneos, sobre tudo o que destrói impiedosamente o homem. Sobre lama e contradições.

              Sei bem que sonhei com crocodilos e não com jacarés. Sou do Pantanal. Os jacarés têm a cabeça mais curta e larga. No meu pesadelo, os dentes dos crocodilos escapavam para fora, mesmo quando eles estavam com a boca fechada. Os jacarés, do tupi “iakaré”, acasalam-se em noites brancas como aquela. Eles se encontram, retiram-se do meio dos caniços, os olhos dourados fulgem dentro do verde de suas peles, em busca da terra firme, do capim duro e selvagem. Mais tarde, num ninho de folhas quentes, estarão ovos ásperos, de onde sairão dezenas de filhotes em busca do rio e do luar.

              Lembrei-me do artista plástico corumbaense Jonir Figueiredo, que tem como tema principal de sua iconografia o jacaré. Jonir é uma espécie de guardião da memória de sua terra. Um dragão batalhando pela cultura pantaneira, essência de sua vida.

              Foi comovente uma reportagem feita pelos jornalistas Cláudia Gaigher e Argemiro Barros, mostrando a realidade de uma região isolada do Pantanal. Era noite escura. Lá vinham as crianças do meio do mato, carregando uma pequena canoa, remando pelo rio Paraguai. De repente, mergulhavam no rio, entre corixos. Atiravam pedacinhos de carne podre na flor da água para atrair os peixes agarrados nas raízes das plantas. Afogados até o peito, estralavam os dedos. Esse era o segredo para apanhar as tuviras que venderiam depois no povoado aos turistas pescadores. Crianças indefesas, sem nome, sem escola, iscas de jacaré.

              Distingo jacarés de crocodilos. Crocodilo é Leviatã, monstro mitológico, sombrio e agressivo. Deus alertou Jó: não se pode fisgar Leviatã com um anzol, nem amarrar-lhe a língua com uma corda, nem furar sua mandíbula com um gancho. Um crocodilo não se vende a pescadores, não se divide entre negociantes, não se criva sua pele com dardos, não se finca arpão em sua cabeça. Não se tenta pôr a mão nele. Basta o seu aspecto de sáurio para nos arrasar.

              Não quero mais sonhar com crocodilos. Sentir a morte à minha frente. Ver-me cercada de inimigos. Enganada pelos meus entes mais próximos. Vou dominar essas criaturas com minha zagaia de índia Guató. Lança de luz que eclipsa e fulmina o perigo.

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