EPHEMERDAS, por GLAUCO MATTOSO
GLAUCO MATTOSO é poeta, auctor de mais de cinco mil sonnettos. Actualmente não compõe mais nesse molde, mas ainda practica outras estrophações.
Para informações sobre a orthographia que adopta, suggere-se accessar:
http://correctororthographico.blogspot.com.br
Coluna 17
DEZEMBRO/2015
UM OLHO NO OLHO, OUTRO NA FOLHINHA
Muita gente poderia suppor que o dia do cego fosse uma data internacional, ja que coincide com o dia da martyrizada Sancta Luzia, que, nas figuras que eu conhescia de infancia, apparescia, de palpebras cahidas, com um prato nas mãos e, como duas gemmas de ovos frictos, seus olhos no centro do prato.
Quem se dê ao trabalho de pesquisar (e não é facil checar boas fontes na rede, todos sabem) constatará, porem, que a data é brazileira e corresponde à morte de José Alvares de Azevedo, considerado o patrono dos cegos no paiz. Esse pioneiro carioca morreu cedo, como seu homonymo paulista, o poeta Alvares de Azevedo, mas teve tempo de introduzir o systema braille por aqui, favorescido que foi pelo imperador Pedro II (mais um poncto a favor do monarcha), que deu appoio ao instituto hoje conhescido como Benjamin Constant (um republicano com cuja cara nunca fui), mas a officialização da data como Dia Nacional do Cego deve-se ao presidente Janio Quadros, em 1961, que teve tempo de fazer outras coisas importantes antes de renunciar ao seu curtissimo mandato. Não discuto as causas e consequencias da renuncia, mas que "Janio era um genio", la isso era... Foi um dos poucos politicos republicanos a cujo charisma tirei o chapéu, uma vez que meu monarchismo só deve satisfacções ao fallescido collega Roberto Piva, que eu reverencio sem reservas.
Isto posto, retomo o thema do capitulo de outubro nesta columna para abbordar a cegueira sob o angulo da diversidade. Digo isto porque uma das coisas que mais me indignaram quando perdi a visão foi o tractamento padrão dado a todos os cegos pelas instituições assistenciaes, não sei si por culpa de deficiencias methodologicas ou por simples preguiça mental. Ora, si entre os "normovisuaes" cada caso é um caso, por que cada cego não saberia onde lhe apperta o passo? Não! A fundação à qual recorri queria me "treinar" como si eu fosse um robô sem formatação que precisasse ser programmado. Eu teria que apprender braille, porque as caixas de remedio trazem relevo de fabrica e porque os cardapios agora ja estão em braille. Teria que usar uma vara metallica dobravel cujo comprimento attinge meu peito, só porque alguem decidiu que todo cego precisa disso e não, por exemplo, duma bengala com cabo de guardachuva da altura do meu umbigo, que acho muito mais practica por ser penduravel no braço emquanto tenho de usar ambas as mãos, sem ter de arrastar pelo chão um troço preso por elastico ao meu pulso. Teria que saber andar bengalando sozinho e, caso dispuzesse de grana, preparar-me para adquirir um cão guia da raça labrador, sendo que minha raça favorita é o basset hound e não tenho a menor intenção de sahir à rua desaccompanhado dum "normovisual" em cujo hombro possa me appoiar. Em summa, os educadores ou rehabilitadores de cegos não querem nem saber si você ficou assim ou é de nascença, muito menos si você ja conhesce o alphabeto romano, inclusive distinguindo uma familia typographica da outra (como a fonte garamond da times) e nem supporta appalpar aquelles ponctinhos salientes que mais parescem gergelim no pão que algo escripto e legivel. Ora, nada tenho contra um systema que permitte que os cegos se alphabetizem, mas eu ja tinha curso superior e ja era escriptor quando fiquei totalmente cego, porra! Eu preciso é dum computador fallante como este no qual redijo minha collaboração, este sim, utilissimo e adequado ao meu caso.
O problema não é só dos cegos, não! Si dependesse das esquerdas trabalhadoras unidas de todo o mundo, por exemplo, todos os cidadãos communs communizados teriam de locomover-se de bicycleta e vestir roupa da mesma cor, como na China maoista. A mulher, si não fosse a dona de casa domesticamente prendada pelos utensilios de consumo capitalista, teria de ser a companheira de lucta maior do operario padrão, com o qual comporia a familia modello do regime socialista, incorruptivel pela decadencia burgueza do lesbianismo ou da sublitteratura pornographica. E por ahi vae, sempre algum dictadorzinho de plantão tentando impor normas de comportamento collectivo, mercadologicas, ideologicas ou theologicas.
Por essas e outras foi que, quando trocaram os elevadores do meu predio, consultaram-me si eu queria braille no painel dos botões e respondi que de nada me addeantaria, ao que elles collocaram um painel com dois typos de relevo, o algarismo arabico e o braille correspondente ao numero de cada andar, de modo que fosse util a mim, que moro no oitavo e reconhesço na poncta do dedo os dois circulos superpostos, e para algum visitante que seja cego de nascença e reconhesça aquellas reticencias verticaes palpaveis. Ao menos nisso minha "especificidade" foi attendida, ufa!
Por este anno, basta. Desejo a todos um bom 2016 e me despeço com estes poeminhas recentes, um sonnetto do livro DESILLUMINISMO, um novo madrigal e umas glosas ineditas.
NÃO ESCREVO EM RELEVO! [5071]
Com odio fico quando acham que leio
usando o braille! Cego totalmente
fiquei ja quarentão! Lendo com lente
ainda estava! Odeio braille, odeio!
Ao cego de nascença existe um meio
de se alphabetizar: o braille a gente
acceita, neste caso! Mas não tente
alguem me convencer que é bello o feio!
Recordo-me das lettras: teem seu traço
de recta e curva feito, não de poncto,
que nada significa e que eu rechaço!
Passar o dedo em ponctos, que eu nem conto,
de tantos que são, frustra! Cansa o braço!
Só noto que um inutil jogo eu monto!
MADRIGAL VISUAL
O cego concretista appalpa o pé
e lê, no amendoim, nonsense, até.
Ninguem é mais poeta nem concreto
que o cego, que tacteia a dimensão
da lettra na palavra, avulso objecto.
Em cada grão palpavel, o olho são
não vê sentido algum, mas interpreto
eu, sem a luz do dia, a cor do grão.
MOTTE GLOSADO
Só desejo, no meu dia,
ser eu mesmo e não robô.
Cada cego gostaria
si não fosse tão submisso
a uma norma, e fallar disso
só desejo, no meu dia.
Ja que faço poesia,
me colloco em tão pornô
situação, que até cocô
tenha um cego de comer.
Assim posso, com prazer,
ser eu mesmo e não robô.
Eu, no dia da cegueira,
não ler braille commemoro.
Nem poemas meus decoro
mas meu faro tudo cheira
e a audição segue certeira.
Bom seria no cocô
não pisar e, no metrô,
depender menos do guia.
Só desejo, no meu dia,
ser eu mesmo e não robô.