Raquel Naveira
Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.
Coluna semanal de Raquel Naveira
– Nº 19, 27/03/2015 –
BOI DE PIRANHA
Certa vez, atravessando uma estrada boiadeira, fomos obrigados a estacionar o carro na margem para que uma comitiva passasse: a manada de lombos e papas acinzentadas; os homens a cavalo, de botas, chapéus e esporas, carregando chicotes, capas de couro, panelinhas, pelegos alaranjados, berrantes de chifres, cuias e outros apetrechos. Lá iam eles desfilando, tilintando, dando gritos e giros sobre as patas das montarias.
– Vão na direção do Piquiri, do Paraguai, lá pras bandas do Abobral, explicava meu tio Atanásio, baixinho, gordinho, contador de casos, que lembrava um Getúlio Vargas do sertão. O rio Paraguai é perigoso, cheio de piranhas ferozes. Sabe o que significa “piranha”? “Pira” é peixe e “ranha”, dente. Tão pequena a piranha e com aquela boca enorme, de dentes rilhados. Quando a comitiva chega à beira de um rio infestado de piranhas, os peões abatem um boi já velho ou doente e atiram seu corpo, sangrando, na água, para atrair essas criaturas carnívoras, enquanto seguem a nado com o resto do rebanho. O espetáculo é de uma crueldade chocante: espumas, bolhas em ebulição, as piranhas frenéticas, excitadas pelo cheiro do sangue e, depois de um ou dois minutos, o esqueleto flutuando na superfície calma.
Visualizei aquela cena de morte. O boi é mesmo sagrado com sua capacidade de sacrifício. Imaginei o animal jogado às piranhas com um olhar doce, desapegado do mundo, contemplando o verde fluxo do rio. Um herói, que antes cavava sulcos na terra com o arado, agora transformado em sumo sacerdote da dor.
Esse ato de alguém se imolar para livrar uma outra pessoa ilustra bem o sacrifício de Jesus na cruz do calvário. Os animais inocentes, sem mácula, sem mancha ou defeito, oferecidos para fazer expiação pelas almas no Velho Testamento apontavam para o grande sacrifício feito pelo Cordeiro, o próprio Deus pagando um alto preço de sofrimento, agonia, suplício para trazer livramento, paz e regeneração para aqueles que aceitam esse mistério.
As piranhas devoraram o boi para abrir caminho, para que o grupo inteiro pudesse ir além, sãos e salvos. Um único boi padeceu por todos. Ele foi o substituto.
– Quantos perigos há na estrada e nos rios para quem anda desgarrado, desviado e sozinho pela Terra, ponderou tio Atanásio, antes de abrir mais uma das infindáveis porteiras de arame farpado até chegarmos à sede da fazenda Roseira.
Naquela época compreendi coisas simples e profundas: ritos de lavoura, fases da lua, criação de gado, revoadas de aves, luta pela sobrevivência. Que a vida da carne está no sangue. E que ele borbulha sobre águas e altares.
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