EPHEMERDAS, por GLAUCO MATTOSO

GLAUCO MATTOSO é poeta, auctor de mais de cinco mil sonnettos. Actualmente não compõe mais nesse molde, mas ainda practica outras estrophações.
Para informações sobre a orthographia que adopta, suggere-se accessar:

http://correctororthographico.blogspot.com.br

Coluna 18

JANEIRO/2016

6 DE JANEIRO/2016: DIA DA GRATIDÃO

NORDESTINIDADE E FESCENNINIDADE

[1] Este titulo, que ja baptizou um livro do professor Barros Toledo, tomo-o de emprestimo para referir-me a outro titulo, o unico que me orgulho de ter recebido em meus 64 annos de vida e 40 de carreira litteraria: membro honorario da Academia Canindeense de Lettras, Artes e Memoria (ACLAME), em julho passado. Dos demais, como "Poeta da Crueldade" ou "Principe das Trevas dos Poetas Pornosianos", nenhum é official nem outhorgado mediante diploma, como aquelle que me chegou por indicação do poeta da terra Sylvio Sanctos.

[2] Não sei por quaes fatidicas (ou vatidicas) veredas astraes me vejo tão transplantado ao solo cearense. Talvez por artimanhas do proprio destino contido no gentilico daquella região que me (nor)destina a correspondencia trocada por decadas com os escriptores de la, como Nilto Maciel (com quem organizei uma anthologia de contistas marginaes em 1977 e em cuja revista LITTERATURA collaborei), Carlos Emilio Correa Lima, Arievaldo Vianna (que, tambem illustrador, collaborou na arte do meu livro SACCOLA DE FEIRA), Pedro Paulo Paulino e o proprio Sylvio Sanctos, entre outros que preferem ficar occultos sob pseudonymo. Veredas, dizia eu, talvez evocativas da estrada decantada por Luiz Gonzaga na lettra do baião que transcrevo de cor:

              Ai ai, que bom,
              que bom, que bom que é
              uma estrada e uma cabocla
              com a gente andando a pé!

              Ai ai, que bom
              que bom, que bom que é
              uma estrada e a lua branca
              no sertão de Canindé!

              "Artomove" la nem se sabe
              si é "home" ou si é "muié".
              Quem é rico anda em burrico,
              quem é pobre anda a pé.

              Mas o pobre vê nas estrada(s)
              o "orvaio" beijando as "flô",
              vê de perto o gallo campina,
              que quando canta muda de "cô",
              vae "moiando" os pé(s) no riacho,
              Que agua fresca, Nosso "Sinhô"!
              Vae "oiando" coisa a "grané",
              coisas que p'ra "mó" de "vê"
              o christão tem que andar a pé.

[3] Claro, estreitei laços tambem com nordestinos de outros estados, alguns radicados fora da terra natal, outros mantendo as raizes. Da Parahyba, alem de Severino do Ramo (parceiro de sacanagens poeticas e sexuaes na phase visual), meu maior interlocutor foi Braulio Tavares, a quem credito o interesse que me despertou a litteratura de chordel (como a de bordel) desde a decada de 1970. De Pernambuco o contacto foi, alem de Jomard Muniz de Britto, os punks da banda Devotos do Odio, o critico João Alexandre Barbosa e seu filho Frederico, o badalado balladeiro litterario Marcellino Freyre e tantos outros litteratos. De Alagoas, ja na phase cega, a professora Susana Souto Silva. Do Rio Grande do Norte, o poeta gay Paulo Augusto e, mais recentemente, o ficcionista Thiago Barbalho. E por ahi vae. A lista cearense accabou ficando maior depois que conhesci o neochordelista Moreira de Acopiara, com quem pellejei em 2007, que me appresentou à pleiade dos fescenninos confrades cultuadores de Aphrodite e Baccho entre Canindé e Caucaya.

[4] A connexão canindeense me propiciou um fertil intercambio nos ultimos annos, tanto pela rede virtual quanto pelo correio physico. À medida que meus livros iam chegando às mãos de Sylvio Sanctos, eu recebia caixas e mais caixas contendo ex-votos em formato de pés esculpidos em madeira, entre outros mimos, até que, surpreso ao receber o enveloppe contendo o diploma da ACLAME, me dei compta de que Sanctos não pilheriava quando me communicou sobre a homenagem a que fiz jus. Dia desses, batteu-me a curiosidade e indaguei delle si a canção gonzaguiana ainda reflectia a realidade da região, em termos de scenario não tão arido. Affinal, o baião nem falla em secca, embora alluda à pobreza. E questionei: Ainda subsiste essa vocação "andarilha" da estrada, em detrimento dos "artomove"? Sylvio respondeu:

{De facto, 65 annos depois dessa canção, o scenario não está melhor. O desmattamento foi generalizado, o clima é causticante, em quasi cinco annos de secca, nada de agua fresca ou gallo campina mudando de cor.

Dependemos de uma adductora distante, com vazamentos pelo percurso, um ou dois dias por semana, pois ha racionamento. O rico agora anda de Hilux e o pobre, predador da apposentadoria dos avós ou do bolsa familia, anda de moto. Paresce não haver uma vocação para o desenvolvimento economico, a exemplo de Joazeiro do Norte. Uns dizem que devido à proximidade da capital. Ha varios factores a levar em compta. Politicamente, ha um chaos que lembra Sucupyra. Gonzaga & Humberto Teixeira não fazem referencia à romaria ou ao padroeiro, será que indirectamente, em seu appello tellurico?}

[5] Em 2008, o circulo de amigos de Sanctos, occulto pelo pseudonymo Manoel No Brega, preparava uma anthologia collectiva intitulada PEROLAS PORCAS, que não chegou a sahir. A pedido, fiz-lhes uma nota prefacial (melhor dizendo, prepucial, ja que se tractava da mais authentica "poesia de bordel"), vazada nestes termos:

{O trocadilhesco heteronymo (e bote hetero nisso) que assigna os sonnettos e as glosas de "Perolas porcas" é porta-voz (ou porca-voz) dum grupo de frequentadores do lendario cabaré Vae-Quem-Quer, na cidade cearense de Canindé. Collegas de vida bohemia e de veia poetica, começaram thematizando o proprio lupanar, exhaurindo-o nas piccantes rhymas em "alho", e accabaram extrapolando o ambiente prostibular em direcção à universalidade da putaria humana. O resultado se corporifica e se desnuda em dezenas de sonnettos e decimas que se flexibilizam entre a redondilha "de maior" e o decasyllabo "safado", com a elasticidade dum courinho de picca. Os leitores de Bocage, de Gregorio, de Moniz Barreto ou de Moysés Sesyom, na certa irão reesporrar ao lerem estas fescenninas satyras, em que o baixo calão se nivela, no mais alto grau, ao baixo meretricio.}

[6] Emquanto accompanhava a preparação da anthologia, eu mantinha um dialogo poetico com os joviaes sonnettistas. Em janeiro daquelle anno, glosei um dos sonnettos que entrariam na collectanea. Transcrevo-o antes do meu:

              Nunca comi ninguem sinão a soldo
              Nos lupanares tresandantes onde
              Andei; por la perdi de vez o bonde,
              As resacas curei com cha de boldo.

              E costumava, à sombra de algum toldo,
              Ja bebado, indagar: -- Ninguem responde?
              Surgia a quenga desse esconde-esconde,
              Mentindo: -- Estava alli com "seu" Haroldo!

              Este era um gay que preparava a boia
              E mendigava algum no bar da Leda.
              De mascotte, elle tinha uma giboya...

              Preferindo beber cachaça azeda,
              Para dormir usava uma tipoya...
              Seu lemma: o pau eu chupo nem que feda...


              SONNETTO PARA UM BORDEL MEMORAVEL [2128]

              Havia um lupanar em Canindé
              chamado Vae Quem Quer, cujo cliente
              prefere até chamar de cabaret,
              provando que saudades delle sente.

              A mim, a quenga classica não é
              quem mais attenção chama, e sim um ente
              folklorico, esse Haroldo, cuja fé
              na propria honra viril era descrente.

              Si eu, cego, alli estivesse, em seu logar,
              teria o mesmo lemma a sustentar,
              ou seja: "O pau eu chupo, nem que feda!"

              Apenas uma coisa eu accrescento:
              si, apoz gozar, mijar-me um pau sebento,
              normal é que, de vaso, a bocca eu ceda...

[7] Outro sonnetto que glosei foi este, tambem composto em orgiaca parceria grupal, ja thematizando os ex-votos que Sanctos me enviava pelo correio:

              Antiga tradição em Canindé
              Exige que alcançada alguma graça
              Procure-se artezão, que logo traça
              Da cura, em rude traço, aquella fé...

              Seja a cabeça, o braço, a bocca, o pé...
              Do corpo alguma parte onde perpassa
              A chaga, a dor... Ha quem promessa faça
              Para livrar o tennis do chulé...

              Mas ao podophilo talvez attice
              Os artelhos, quem sabe o mocotó
             Dos beatos, suados e sabendo a pó

              A fustigar na senda da crendice...
              Em lavapés a lingua ja addeanta
              Sem esperar a quincta-feira sancta...


              SONNETTO PARA UMA FÉ TIDA COMO FETIDA [2136]

              Fallei ja muito sobre um pé de ex-voto,
              lavrado na madeira, nordestina
              e antiga tradição, na qual só boto
              meu credo si a intenção for fescennina...

              Fallei do lavapés, gesto que adopto
              não só nas quinctas-feiras, e em bolina
              converte-se, pois lambo, e até na photo
              estou, a salivar na fedentina...

              Chulé que nem aquelle do romeiro
              que, sob o sol, caminha o dia inteiro, é coisa que venero e glorifico!

              Christão nem sou, mas, cego, só me humilho:
              lavar, lambendo, os pés dum andarilho,
              é estar do pobre abbaixo, alem do rico...

[8] Ainda em fevereiro de 2008, ao receber um ex-voto mais detalhado no peito que na sola do pé de madeira, aggradesci o presente com este sonnetto, glosando mais um que me chegava simultaneamente à encommenda:

              PACOTE AO POETA [Sylvio Sanctos]

              Enviado numa caixa de sapato,
              partiu pelo correio vespertino,
              tendo como SAMPA fim, destino,
              aquillo sobre o qual fizemos tracto...

              Na madeira, paresce-me, ha extracto
              fedido, como gostas, nada fino...
              Si egypcio, não garanto... descortino
              no "Manual do podolatra" este facto.

              Pedes-me do surfista sua pranchha,
              mas não a sobre a qual o pé escancha...
              Tua onda attendo então por outro "tubo"...

              Elevado o teu tacto seja ao cubo!
              quando nas mãos tiver de Canindé,
              em ex-voto, talhado bruto pé.


              SONNETTO PARA O RECEBIMENTO E A ACCUSAÇÃO [2313]

              Accaba de chegar a caixa. Grato,
              accuso que a recebo. Dentro, inteira
              lavrada em bruta tora de madeira,
              a estatua dum pezão thalludo e chato.

              A peça que esculpiram tem o exacto
              formato que eu desejo e que a certeira
              visão do amigo Sylvio, de primeira,
              sacou do que, em meus versos, tanto tracto.

              Só tenho a lamentar que esse artezão
              tão habil, ja famoso em Canindé,
              não tenha, sob os dedos, feito o vão.

              Em tudo está perfeito aquelle pé:
              o dorso, a sola, as unhas... Meu tesão
              sentiu falta é do nicho do chulé!

[9] Não foi Sanctos, comtudo, quem me despertou o vicio de colleccionar ex-votos de pés. Desde 2006, quando ganhei um do artista plastico Valdir Rocha, percebi que aquellas rusticas estatuetas excitavam meu senso tactil a poncto de me fazerem viajar em oniricas (para não dizer em orgasticas) scenas emquanto as appalpava. Eis o sonnetto que fiz na occasião, conclamando os amigos dispostos a me papparicar:


              SONNETTO ESPALHADO [1069]

              Procura-se um pé chato, largo e grande,
              que tenha bem mais curto o "pollegar"
              que o dedo "indicador"! Nesse invulgar
              formato, algo esculpido alguem me mande!

              Você, que as dicas pela rede expande,
              me adjude este pedido a divulgar!
              De macho ou femea, tanto faz, si andar
              descalço ou com pesadas botas ande!

              Ja fiz, quando enxergava, collecção
              de moldes no papel, porem agora
              que estou no escuro, vejo com a mão!

              Talvez algum ex-voto numa tora
              lavrado tenha as formas que darão
              noção tactil do pé que um cego adora!


[10] Mas Sanctos não correspondeu apenas à minha demanda por artefactos typicos da terra: graças a elle obtive uma copia da rara monographia dum illustre canindeense, intitulada justamente O SONNETTO. Tracta-se do retardatario parnasiano Cruz Filho, que mappeou o genero em auctores dos dois lados do Atlantico e me instigou a elaborar uma reedição commentada, que disponibilizei na rede sob o titulo HISTORIA E THEORIA DO SONNETTO e que hoje está tambem na nuvem. Foi esse documento digital, sem duvida, o que mais contribuiu para que o titulo da ACLAME me fosse concedido. Entretanto, nem só de sonnetar vivem os bardos nordestinos: o motte glosado, ou seja, o disticho commentado em decima, ainda é e será sempre a modalidade mais propicia à satyra fescennina. Tambem nesse molde trocamos figurinhas, os canindeenses commigo. Um exemplo está na collectanea que organizei com o uspiano professor Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, intitulada AOS PÉS DAS LETTRAS: ANTHOLOGIA PODOLATRA DA LITTERATURA BRAZILEIRA, que sahiu pelo sello Annablume em 2011. Algumas das glosas ao motte abbaixo são delles. Transcrevo todas as incluidas, a começar pela minha.

              O machão tem poncto fracco
              no pezinho da mulher.

              De virilha ou de sovaco
              ninguem tem medo ou vergonha.
              Temendo que alguem lhe ponha,
              o machão tem poncto fracco
              é por traz, no seu buraco!
              Si dominado estiver,
              faz, porem, o que ella quer:
              lambe até pé de outro macho
              si é mandado e for capacho
              no pezinho da mulher!

Tambem glosado por Braulio Tavares na decima abbaixo.

              E então quando tira a meia,
              apoz descalçar o tennis...
              Não admire que o penis
              cresça, duro, e inche a veia!
              Aroma que me incendeia
              para o que der e vier;
              fetiche de Baudelaire
              pisando as uvas de Baccho...
              O machão tem poncto fracco
              no pezinho da mulher.

Tambem glosado pelo cearense Arievaldo Vianna na decima abbaixo.

              Mulher com sua belleza
              E o poder da seducção
              Sempre domina o machão
              Abrindo sua defesa...
              Mas não quero ser a presa
              Nem fazer o que ella quer.
              Hei de usar o meu "talher"
              Para espetar seu "cassaco".
              O machão tem poncto fracco
              No pezinho da mulher.

Tambem glosado pelo cearense Sylvio Sanctos na decima abbaixo.

              Ao machão accostumado
               Fellar o salto é normal
              Gozando si sabe a sal
              Lambe palmilha e solado
              Ao jugo femeo prostrado
              Põe a lingua onde não quer
              Porque si assim não fizer
              Ella pisa no seu sacco
              O machão tem poncto fracco
              No pezinho da mulher.

Tambem glosado pelo cearense Pedro Paulo Paulino na decima abbaixo.

              Eu mesmo não dou cavaco,
              Pois da verdade eu não zombo:
              Por boa linha de lombo
              O machão tem poncto fracco.
              Assim tambem me destacco.
              Com ellas não tem mester.
              Mente muito quem disser
              Que não fica genuflexo
              Deante do lindo sexo,
              No pezinho da mulher.

Tambem glosado pelo paulista Danilo Cymrot na decima abbaixo.

              E não é que bom malaco
              Ja não sae com dama à toa
              Nem enjoa da patroa?
              O machão tem poncto fracco,
              Passa a noite em seu barraco
              Como um conjuge qualquer,
              Accredite quem puder!
              Quem reinava nos desfiles
              Tem seu calcanhar de Achilles
              No pezinho da mulher...

Tambem glosado pelo paranaense Leo Pinto na decima abbaixo.

              Do potentado ao malaco,
              do escandinavo ao zulu,
              nas immediações do cu
              o machão tem poncto fracco.
              Si a lingua desce do sacco,
              elle finge que não quer,
              mas si acaso ella couber
              no buraco mais abba'xo
              elle vira até capacho
              no pezinho da mulher.

Tambem glosado pelo pernambucano Pedro Americo na decima abbaixo.

              Depois de Glauco Mattoso
              de Braulio e Arievaldo
              com que osso faço o caldo
              neste thema tão mimoso?
              Si me inspirar o tinhoso
              si um pé bonito tiver
              e ainda o verbo vier
              na lei de Eros e Baccho
              o machão tem poncto fracco
              no pezinho da mulher.

[11] Concluindo este retrospecto, transcrevo a glosa com a qual manifestei minha gratidão pelo accolhimento dado a um cego menos cantador que contador de desvantagem. Si do Gonzagão eu ja valorizava em particular a canção "Assum preto" por fallar de perto ao meu callo de cego, agora incluo "Estrada de Canindé" entre as composições das quaes o valor affectivo pesa mais que a preferencia pelos classicos prioritariamente anthologicos, como "Asa branca" ou "Parahyba". Um kardecista ja me disse que, sendo Ferreira da Silva, glaucomatoso e bisexual, é bem possivel que minha vida não passe duma reencarnação do Virgulino. Si não for, na proxima entro para o bando de Lampeão nas deserticas caatingas de algum planeta gemeo em outra galaxia. Emquanto isso, me contento por ter entrado para o selecto grupo dos illustres andarilhos da tavola redondilha.

              Canindé, Canindeense:
              de la veiu o meu diploma.

              Immortal tornei-me, pense
              quem duvida o que quizer!
              E o logar não é qualquer:
              Canindé, Canindeense!
              Pois não é que la se vence
              o ostracismo que se somma
              à cegueira que o glaucoma
              me causou? Pois é, na ACLAME
              tenho amigo que me acclame:
              de la veiu o meu diploma!

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