Raquel Naveira
Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.
Coluna semanal de Raquel Naveira
– Nº 22, 14/04/2015 –
PALHAÇO
Por muito tempo colecionei palhaços: estatuetas, quadros, bonecos de macela e seda, marionetes, fantoches, criaturas feitas de cordas e enfeitadas de guizos. Os palhaços se confundiam com os livros, as almofadas, os discos de vinil e a antiga máquina de escrever no pequeno escritório de nossa casa.
A figura do palhaço me fascinava, apontava para a outra face da realidade. Porque todo palhaço esconde um drama íntimo, uma discordância oculta. Foi abandonado pela mulher, traído, perdeu a família num incêndio, recebeu golpes do destino, sentiu a derrota, sofreu na carne o ridículo e a zombaria, conheceu o reverso da medalha. Era rei e para não ser assassinado transformou-se em bufão, bobo da corte, criador de peças cômicas, que tudo observava por trás das cortinas do picadeiro. Mas quando se senta frente ao espelho e retira as camadas de cal e maquiagem, vai aos poucos encontrando a si mesmo, a sua consciência dilacerada. As lágrimas escorrendo por sua face cor de estopa.
Nunca reneguei o palhaço, ao contrário, amei-o por mostrar minhas falhas e esquisitices, minha sensibilidade à flor da pele, a parte de mim que mais me incomodava. Amei no palhaço tudo aquilo que me tornava mais compreensiva, humana, aberta à Poesia e à Ternura.
Identifiquei-me demais com o filme O Palhaço, dirigido e estrelado por Selton Mello. Conta a história de Benjamin, o palhaço Pangaré e de seu pai Waldemar, o palhaço Puro Sangue, interpretado por Paulo José. A divertida trupe do circo mambembe atravessa estradas poeirentas e pobres do Brasil levando sua arte desconcertante e ingênua, que nos leva a refletir em tom de brincadeira sobre anseios e coisas graves. Benjamin, em busca de um sonho e de um amor, decide viver como um funcionário, uma pessoa comum. Desiludido, vê que ser palhaço é sua verdadeira missão.
Entrei imediatamente naquele clima sério e lúdico, cheio de humor, drama, melancolia e uma estranha harmonia interior. Benjamin, o palhaço, carregava o peso da responsabilidade, da liderança, de levar nas mãos e nos olhos a chama da esperança e da resistência.
Lembrei-me também de um poema do infeliz Cruz e Sousa, gênio incompreendido que morreu na mais completa miséria, em que ele compara o seu coração a um palhaço desengonçado, acrobata da dor que gargalha, num riso de tormenta, nervoso, irônico, um riso absurdo, convulsionado, agônico. A plateia pede bis, enquanto o palhaço faz piruetas de aço até cair no chão, afogando-se em sangue quente: “Coração, tristíssimo palhaço”, revela o poeta.
Espalhei os palhaços pelo berço e pelo quarto amarelo de meu primeiro filho, que hoje é um homem. Sumiram todos no tempo, num cortejo lento de egos perdidos. Ponho a mão no peito. Choro. Descobri o porquê de tanto fascínio: é triste o meu coração.
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