COLUNA DE THATY  MARCONDES
 
Na área empresarial, trabalhou na implantação de projetos de administração, captação e aplicação de recursos, e ainda em redação e revisão de textos técnicos. Nascida em Jundiaí, reside atualmente em Ponta Grossa/PR.

2ª quinzena de julho

ADORMECIDOS

As donas de casa escrevem sobre a tirania da vida doméstica de uma classe social massacrada pela utopia das novelas do final do dia. Enquanto isso seus maridos chacoalham em pé nos ônibus mal cheirosos qual simples sardinhas tentando o destino de serem acondicionadas numa lata com ferrugem e óleo retirado de algum caminhão velho e podre.
A sardinha vai à mesa, disfarçando a falta da carne, enfeitando o macarrão, perfumando a casa toda. O pai disfarça com queijo ralado, os filhos colocam pregadores de roupas no nariz; da mãe-cozinheira rola a lágrima embaçando a visão de prato tão pobre. Ela só come se sobrar algo na travessa ou no prato de algum pimpolho, que disfarçará o ronco no estômago com bolachas quebradas, compradas a quilo, do ambulante da Kombi velha, anunciadas em voz fanhosa. O cachorro sarnento espera à porta, ao menos um pedaço de pão dormido. Mas este é utilizado pra limpar o prato do molho aguado, pela
chorosa pobretona que nem lápis tem pra escrever sua desgraça. O pai-sardinha-refeição disfarça a dor no estômago com um gole de pinga barata. O gosto é ruim, mas aquece o estômago e lhe dá alentos de calmaria: cochila ao som do "Boa noite" brandamente emitido pelo jornal global televisivo. As lágrimas dela, agora, lavam os pratos. O cachorro uiva a dor que lhe aperta o estômago. A bolacha acabou, os filhos choram. Ela aquece a água amarelada da torneira e faz um chá, com uma folha que "descobriu" num pedacinho de terra, no quintal de chão batido. Serve e lhes diz: "Agora pra cama, acordar cedo pra fazer lição, que pra vocês quero um futuro melhor!".
O pai ronca na sala, resmungando quando se mexe e sente a mola da poltrona
rasgada a cutucar sua carne magra recoberta de pele ressecada. Ela se apressa, tira o avental encardido e senta pra ver a novela. Não pode aumentar o volume da TV, pois acordaria o marido-sardinha-pai-refeição; não consegue ouvir a TV, pois o dito cujo ronca em alto e bom som toda a penúria daquele imenso vazio no estômago. A sardinha bóia, no mar ardido de pinga. Ela adivinha os diálogos, sonha situações, como quem lê um gibi pelas imagens por não saber ler. Vai dormir feliz: teve mais meia hora de felicidade, imaginando-se na pele de outros mais afortunados do que ela, mãe-lágrima de estômago vazio. Toma um chá da folha amarga, gargareja espantando a dor nos poucos dentes, alisa a barriga inchada pelo vento e vai se deitar no colchão perdido no chão do cômodo. O cachorro sarnento e faminto uiva. Ele não toma chá e não sobrou bolacha. O pão acabou. Sobrou arroz dormido e uma colher de feijão. O cão come, e dorme choramingando, sonhando com a vida dos cachorros de novela.

Arquivo de crônicas anteriores:

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