Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 38, 13/08/2015

RAPOSA

                       A raposa é símbolo da astúcia e da esperteza em inumeráveis mitos e contos pelo mundo. Imagino-a sempre com o pelo ruivo, o ar inquieto, cavando buracos na terra.

                       A fábula mais citada é sem dúvida “A Raposa e as Uvas”, de Esopo, mestre em narrar o drama existencial do homem, substituindo personagens humanos por animais. Uma raposa, morta de fome, viu ao passar diante de um pomar, pendurado nas ramas de uma videira, um cacho de uvas roxas e maduras. Resolve colher o alimento. Usa de todos os seus dotes e artifícios para pegá-las, mas como estavam fora de seu alcance, nada conseguiu. Triste e frustrada, deu-se por vencida e consolou a si mesma dizendo:”_ Olhando com atenção, percebo que as uvas estão estragadas”. Moral da história (porque toda fábula nos dá uma lição): “É fácil desprezar o que não se pode obter”. Como dói a nossa vaidade. Como sofremos com nossas limitações.

                       Saindo do mundo das fábulas e entrando no dos sonhos, nos mergulhos do inconsciente no passado, lembrei-me daquele conto fantástico de Lygia Fagundes Telles intitulado “A Caçada”, verdadeiro apelo para a imaginação. Um homem está numa loja de antiguidades, que tem cheiro de arca de sacristia, panos embolorados e livros comidos de traça. O que chama a sua atenção é uma tapeçaria que toma a parede no fundo da loja com a cena de uma caçada. No primeiro plano, um caçador de arco retesado, apontando para uma touceira. Num plano mais profundo, um segundo caçador espreita por entre as árvores esmaecidas do bosque. O homem respira com esforço e comenta com a velha, dona da loja, que as imagens lhe parecem cada vez mais nítidas e vivas. Percebe, de repente, que já participara de uma caçada como essa. Pressente o pânico do animal atrás da touceira (seria uma raposa?). Sente náusea, tontura. Vai para casa dormir. Após uma noite insone, retorna à loja, percorre o corredor até o fundo, onde está a tapeçaria. Cambaleando, segura uma coluna, seus dedos afundam por entre os galhos e ele penetra na tapeçaria, entra no bosque, os pés pesados de lama. Seria ele o caçador? Ou a caça? Comprimiu as palmas das mãos, sentiu sangue na boca, uma dor súbita no coração. Rolou encolhido. Descobriu: ele era a raposa.

                       No livro bíblico “Cantares de Salomão”, num cenário de paz, amor, festa de casamento, aparecem as raposas. O noivo clama para que se apanhem as raposinhas porque elas fazem mal às vinhas em flor. Sim, as raposinhas são pequeninas, más, vorazes, causam danos, divisões, perturbações, destroem, matam. Ignoramos muitas vezes o perigo das suas patinhas, dos seus focinhos, das suas fraudes que vão minando a sensibilidade de nossa consciência: fofocas, intrigas, ciúme, inveja, queixas, ingratidões, grosserias, calúnias, contendas, centenas de coisinhas que turvam nossa visão. Tudo vai se esburacando, esboroando. Secam à nossa volta as flores outrora brancas e perfumadas.

                       Em outra passagem, Jesus é avisado pelos fariseus que Herodes quer matá-lo. E ele lhes responde que digam àquela raposa que ele continuará expulsando demônios e curando, hoje, amanhã e sempre. É o desafio ao poder político que corrompe e embaça o sentido verdadeiro do Reino.

                       Ezequiel abominou os falsos profetas que anunciavam uma mensagem inadequada para o seu tempo. Em vez de advertirem o povo para a ruína iminente da nação, convocando-o à limpeza e ao arrependimento, preferiam tranquilizá-lo a respeito do futuro. Chamou esses loucos de “raposas no deserto”.

                       Recordo da história de Rommel, o Raposa do Deserto, marechal-de-campo do exército alemão, durante a Segunda Guerra Mundial. Célebre sua intervenção na África do Norte, no comando de um destacamento destinado a auxiliar as forças italianas que batiam em retirada frente às tropas britânicas, no deserto da Líbia. Na sua estratégia de líder militar, Rommel dominava as táticas com blindados. Levantava nuvens de poeira, deixava rastros para confundir o adversário. Arriscava-se com velocidade e surpresa como um fantasma nas areias. Era admirado por amigos e inimigos. Sem nunca ter entrado no partido nazista, Rommel torna-se cada dia mais crítico ao governo do Führer. Liga-se a oficiais conspiradores membros da resistência alemã contra Hitler. Certa noite, num carro preto, aproximam-se de sua casa dois generais de Hitler que lhe trazem os seguintes termos: ou ele vai a Berlim, passa por um julgamento e é condenado à morte, condenando também sua família a ser confinada em um campo de concentração ou, sozinho, acompanha os oficiais e ingere veneno, suicidando-se. Ele escolhe a segunda opção, despede-se da mulher e do filho e entra no carro preto. Seu cadáver é encontrado horas depois. Seu funeral é celebrado com altas honrarias, numa amarga encenação.

                       Hoje tememos os lobos solitários. Os lobos são parentes das raposas. Agem em nome do jihadismo, da Al Qaeda, da dimensão ideológica que opera nas mentes. São atores lupianos estabelecidos em qualquer lugar, uivam nas redes sociais, buscam matilhas imaginárias. Agem espontaneamente, sem comando, inseridos culturalmente em sociedades anfitriãs que pretendem alcançar. Pelos eriçados, golpes armados, caudas em riste, circulando nas bocas e plataformas do extremismo. Conectados online com luas de sangue.

                       Fiquemos atentos. Em todo canto há raposas que ludibriam, enganam, saqueiam, caçam, invadem nossas vinhas, escamoteiam-se no deserto. Estão cheias de apetites e artimanhas. Transformam-se em feiticeiras sedutoras. Em homens-raposa que se prostram e preparam o ataque, a cada nascer do sol.

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