EPHEMERDAS, por GLAUCO MATTOSO

GLAUCO MATTOSO é poeta, auctor de mais de cinco mil sonnettos. Actualmente não compõe mais nesse molde, mas ainda practica outras estrophações.
Para informações sobre a orthographia que adopta, suggere-se accessar:

http://correctororthographico.blogspot.com.br

Coluna 19

FEVEREIRO/2016

30 DE JANEIRO/2016: DIA DA SAUDADE

Tenho um orelhudo bassetudo chamado Chicho, de cuja existencia ha quem duvide. A mim tanto faz, ja que muita gente duvida da minha propria existencia. Quem duvida allega que venho gabando meu bassethound desde os annos noventa e que um cachorro de verdade não viveria até agora, todo pimpão, pernicurto, orelhilongo e marron. São modos de ver. Poucos supporiam que um cego escrevesse mais de cinco mil sonnettos, alem de obras noutros generos, depois dos cincoenta. Portanto, tenho credenciaes para confrontar as incredulidades. Mas não é de virtudes nem de virtualidades que quero fallar. O que desejo é confraternizar com outros donos de bassets, visando a troca de figurinhas e factoides sobre o comportamento da salsicharia.

O primeiro e mais assiduo desses confrades é conhescido aqui no bairro como Seu Jorge, mas, filho de inglezes, chama-se na verdade George Rogers. Seu bassetudo se chama Salomão Swift, mas, para os amigos, Salô. Seu Jorge é sessentão como eu. Quanto ao Salô, tem a edade do meu Chicho, ou seja, suppostamente advançada porem tenra como um presuncto natalino.

Chicho foi registrado como Chichorro da Gama no certificado de pedigree, mas prefere ser chamado pelo appellido, tal como o Salô. A principio imaginei que o Chicho precisasse de companhia e até pensei em dar-lhe dois "maninhos", o Chocho e o Chucho. Quando o Chicho enjeitasse alguma refeição, bastaria admeaçar offerecel-a ao Chocho ou ao Chucho, e immediatamente elle limparia o prato. Deschartada, por inviavel, a idéa de ter trez bassetudos num appartamento, agora basta admeaçar o Chicho de dar seu prato ao passarinho que nos frequenta a janella, e não sobra migalha da ração. Não que o Chicho seja magro e inappetente, fique claro. Elle gosta é de filar tudo que a gente esteja comendo, alem dos abundantes biscoitos caninos que abbastescem nossa despensa. Quando se enfastia da ração é porque ja está empanturrado de guloseimas, como qualquer creança estragada.

A eventual companhia de que o Chicho sentia, talvez, a falta, surgiu quando fui appresentado ao Salô e seu dono, os quaes passaram a nos visitar regularmente, com direito a reciprocidade. Nessas occasiões, Chicho e Salô viravam uma verdadeira dupla do barulho. Akira, meu companheiro, que os photographa e filma, ja collecciona formidavel acervo de scenas anthologicas, comparaveis aos mais assistidos videos do youtube, estrellados por famosos bassethounds internacionaes, como Frank the Tank e Sweet Sarah, Lakka e Hugo, Elbee ou Erubi San, Hal ou Haru San, Porthos McRuff, Lucy, a cantora lyrica, Lyly, a chorona cynica, Archie, o amigão dos gattos, Tommy, o pianista, Monty e Benji, os anniversariantes, Moose, que passeia de carro com a cara para fora, e tantos outros.

A convivencia do Chicho com Chocho e Chucho, no dia-a-dia, seria bem difficil, tendo que dividir a comida e o espaço de carinho da gente. Mas com Salô a coisa é differente, pois o esporadico tempo das visitas, de parte a parte, mal chega para tanta cheiração, lambeção, lattição e abanação de rabo. Alem disso, são mais donos dividindo a tarefa de vigiar e papparicar os dois bagunceiros. Jorjão sempre se promptifica a leval-os de carro até o parque, coisa que Akira não poderia fazer, pela falta de carro, nem eu, pela falta de visão. A proposito, si a cor do Chicho é todinha marron, a do Salô é quasi toda preta. As toucas protectoras das orelhonas durante o passeio, essas differem: as do Chicho em tons de vermelho, as do Salô em azues variados. Akira, quando pode, accompanha Jorjão no carro, para photographar a salsicharia à solta no parque, mas eu só fico em casa, desmotivado pela cegueira.

Minha sensação de isolamento se aggrava nos finaes de anno, quando Akira passa Natal e réveillon no sitio dos paes, proximo à reserva florestal das cataractas do Iguassu. Sim, ja fui convidado a accompanhal-o, mas, prevenido accerca das aranhas gigantes, das cobras, dos mosquitos e da inclemencia climatica, prudentemente declinei. Ja que os mosquitos andam na moda, vale salientar que, naquellas bandas, são tantos a nos piccar num só momento, que tornariam sem effeito quaesquer allusões a repellentes, insecticidas chymicos e electricos, ou cortinas protectoras. Nem preciso, portanto, referir-me a piccadas mais lethaes ou phobicas.

Na ausencia do Akira, Chicho passa uns dias na casa do Salô, para não incommodar outros amigos ou parentes que antes tomavam compta delle. Seu Jorge está mais estructurado para attender às necessidades quotidianas dos molecotes, incluindo qualquer hypothetica emergencia veterinaria (algo de que Chicho jamais necessitou), alem de propiciar-lhes a mutua companhia, até que, com o retorno do Akira, tudo volte à roptina e ao convivio domestico.

Quanto a mim, fico remoendo a falta de companhia, occupando o tempo entre o somno, o som nos phones, as noticias no radio ou o trabalho no computador fallante. Passados os pyrotechnicos festejos do anno novo, a Villa Mariana mergulha em sepulchral quietude, tanto nocturna quanto nas manhans ensolaradas, quietude quebrada apenas pelo rhoncho das motos dos entregadores de pizza, à noite, ou pelo esporadico lattido da cachorrada. Neste começo de janeiro, entretanto, paresce que até a cachorrada accompanhou os donos nas viagens de ferias. Excepto por um esquecido guardião que, lamentando sua condição de prisioneiro, solta a voz, fazendo echoar pelos quintaes, reverberado de predio em predio, aquelle uivo semelhante ao do lobo desgarrado ou do lobishomem sem rhumo no meio do matto.

Aquillo me deixa agoniado. Meu choro é silencioso, meditabundo e inconsolavel. O delle é uma especie de contraponcto loquaz da minha mortificação muda. Só me resta contactal-o em pensamento, tentando uma communicação telepathica entre nossas carencias affectivas e existenciaes. Nem sei si esse abandonado cachorrão é bassethound. Provavelmente não, pois uiva como cão de maior porte. Mas, nessas horas, pouco importa a minha preferencia pelos rasteiros e salsichudos. Eu, o cachorrão deshumanista, solidarizo-me com seu desamparo e, na impossibilidade de soccorrel-o (ou de ser soccorrido por elle), limito-me a compor-lhe a endecha a seguir transcripta, com a qual me despeço e aggradesço a paciencia de quem leu até aqui.

              O BAIRRO DAS HORAS UIVANTES [Glauco Mattoso]

              Um anno interminavel foi-se embora,
              saudades sem deixar. Sacudo o pó
              do tempo nas sandalias e ao brechó
              separo mais um livro, ou jogo fora.

              As noites silenciam, quasi, agora
              que todos viajaram e estou só.
              Ah, como dum cachorro sinto dó!
              Escuto o seu chamado: ah, como chora!

              Ao longe uivando, ouvil-o só peora
              a minha solidão e apperta o nó
              que trago na garganta. Nem totó
              mimoso, nem rueiro, é o cão da aurora.

              No longo feriadão, sente a demora
              dos donos, num quintal qualquer, mas, oh,
              quizera estar com elle, que xodó
              me passa a ser! E eu choro, sem ter hora...

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