Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 26, 20/05/2015

O AVIÃO INVISÍVEL

                   Por muito tempo aquele avião foi invisível para mim. Atravessava a rua Pinheiro Machado, no coração do bairro de Laranjeiras, entre elevados e árvores de fícus e observava a escultura em bronze, do tamanho natural de um homem, do aviador Carlo del Prete. Com os olhos baixos li os dizeres da placa. Descobri que se tratava de um tributo a um herói, pioneiro que arriscou a própria vida fazendo um voo sem escalas entre Montecélio, perto de Roma, até o Rio Grande do Norte, em 1928. No mesmo ano, quando testava um avião em acrobacias sobre o mar, caiu na baía da Guanabara. Morreu, alguns dias depois, no hospital, em meio a muito sofrimento. Foi extraordinária a comoção da cidade. A estátua marca o lugar onde Del Prete recebeu homenagens póstumas, próximo da embaixada italiana.
                   Um belo dia, quando fazia a travessia perigosa do viaduto em direção à praça, deparei-me com o avião. Sim, acima da estátua de Del Prete, meio coberto pelas folhas de fícus, havia um avião, uma enorme reprodução do avião usado pelo aventureiro. Que surpresa. O avião estava ali o tempo todo e eu não tinha reparado nele.
                   Lembrei-me dos índios que não enxergaram as caravelas. Eles não conseguiram ver coisa alguma, até que as caravelas estivessem a pouca distância da praia. A explicação é que a caravela era algo desconhecido para os nativos e que a mente só pode ver o que conhece. Por mais estranho que pareça, o que a mente não conhece é invisível aos olhos, é parte da paisagem. As caravelas surgiram da névoa, estavam ocultas por um véu espesso como se fossem fantasmas. A bruma é mística, separa mundos. As brumas separaram Avalon, terra dos magos e das fadas, do mundo medievo do rei Artur. A impactante chegada das naus dividiu culturas. Os homens brancos, considerados filhos do deus Sol pelos índios, trouxeram guerras e enfermidades pelas espumas do mar.
                   O avião estava ali o tempo todo: matéria compacta, mas não passava de um imenso vazio atômico não captado pelo meu pensamento e pela minha vontade. O avião era “maya”, como diriam os budistas, ilusão não projetada em meu restrito campo de visão. O avião era essência pura, fruto de uma forma a princípio abstrata, alto reflexo de um sonho transfigurado em realidade, como imaginou Platão em sua “Teoria das Ideias”. Talvez eu estivesse de costas para a entrada da mítica caverna, presa na escuridão, e, agora, subitamente, na luz da verdade, brilhou, dourado, o avião.
                   O escritor Antoine Saint-Éxupery, autor da fábula “O Pequeno Príncipe”, também foi piloto, escreveu sobre a aviação, sobre a sensação de solidão ao sobrevoar os desertos. Desapareceu misteriosamente num voo de reconhecimento na região do Mediterrâneo. Os destroços da aeronave foram encontrados e é provável que tenha sido abatida por alemães. Foi pela boca do seu personagem que ele nos ensinou: “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.” Ah! Como precisamos de amor, companheirismo e amizade, meu Pequeno Príncipe.
                   Dá para entender porque o apóstolo Tomé duvidou da ressurreição de Jesus e o sentido do ditado popular: “Aquela pessoa é feito São Tomé, precisa ver para crer.” Tomé viu Jesus, tocou em suas chagas. E eu que preciso crer para ver, adorar um Deus em Espírito, nem sabia que naquele ponto da vida cruzara com um avião invisível. Mas quando o vi, fui tomada por uma onda de consciência. Não coloquei mais limites entre o natural e o sobrenatural. O avião invisível me provou que há coisas que estão ao nosso lado, que a fé é maior que tudo que o universo nos esconde.

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