EPHEMERDAS, por GLAUCO MATTOSO
GLAUCO MATTOSO é poeta, auctor de mais de cinco mil sonnettos. Actualmente não compõe mais nesse molde, mas ainda practica outras estrophações.
Para informações sobre a orthographia que adopta, suggere-se accessar:
http://correctororthographico.blogspot.com.br
Coluna 20
MARÇO/2016
14 OU 21 DE MARÇO/2016: DIA DA POESIA
Para lembrar a poesia, nada melhor que um conto. Dum de meus melhores, amigos e collegas de penna, Luiz Roberto Guedes, recebi dia desses outro conto do typo "veridico retocado", em que elle revisitava uma visita que me fez quando eu morava no Rio, entre 1975 e 1978. Nem todas as scenas recuperadas por Guedes estavam na minha memoria, mas as reminiscências de Sancta Thereza me refrescam o convivio com varios artistas da epocha, inclusive compositores como Sergio Sampaio, hoje pouco lembrado mas idolo meu naquella decada. Sergio tinha desponctado com o album que trazia a canção "Eu quero é botar meu bloco na rua", mas não era essa a minha faixa favorita. Eu preferia as mais rockeiras, typo "Labyrinthos negros", ao estylo de seu amiguito Raul Seixas, embora tambem no samba Sampaio fosse meio anticonvencional, com lettras cerebraes cantadas em dicção quasi declamatoria, sobre arranjos fusionistas. Junctamente com GITA do Raul, foi o disco que mais ouvi naquelles mezes antes de me mudar para o Rio, sem suppor que faria amizade com aquelle antiesthetico personagem que exhibia os pés descalços no anterior LP da Sociedade Kavernista, uns pés magros e compridos que me despertavam phantasias, bem differentes dos de Raul, que tambem apparesciam nas photos da contracappa.
Ja ambientado no clima postropicalista carioca, fui appresentado ao Sergio por um batterista que o accompanhava e com quem dividi casa por breve tempo. Sujei os pés na lama e fui conversar com elle, como diria o proprio Sampaio. Mostrei-lhe alguns poemas, na esperança de que os musicasse, mas elle era muito bom de lettra e precisava approveitar as proprias idéas. Mesmo assim, approveitou algumas minhas, o que me deixou gratificado. Uma dellas foi bem podolatra. Suggeri que, num próximo disco, elle fosse photographado mostrando as solas em primeiro plano, já que no disco kavernista só dava para ver o dorso. Sergio achou graça, captou a minha mensagem, mas, timidamente, desconversou. Quando eu já voltara a morar em Sampa, sahiu o album TEM QUE ACCONTESCER, em cuja cappa elle mostrava as solas bem na cara da gente, embora não descalças. Mas a melhor idéa elle approveitou numa lettra. Em nossos pappos, eu battia na tecla do auctor marginalizado e inedito, ainda antes de bater na tecla "o" que marcaria a typologia do JORNAL DOBRABIL. Sergio concordava que o poeta tinha que buscar vehiculos alternativos, em logar de battalhar no mercado livresco, que era elitista e, peor, censurado pela dictadura. Elle appoiava francamente a independencia e a clandestinidade dos poetas marginaes, precursores dos actuaes expoentes da scena suburbana, como os manos da Cooperipha. Dahi a phrase "Um livro de poesia na gaveta não addeanta nada: logar de poesia é na calçada", que me occorreu durante aquellas conversas. Elle a annotou na cabeça e transformou-a na canção "Cada logar na sua coisa". Preste attenção nessa lettra quem tenha a paciencia de ler o que escrevo.
E por que a relatei? Porque lamento não ter sido photographado ao lado do Sergio, ou por não ter apparescido em nenhum dos slides. Em compensação, na mesma epocha alguem fez imagens minhas em super-8, coisa ainda mais rara que as photos, hoje tão faceis de tirar digitalmente e postar instantaneamente na rede. O auctor da proeza foi Fabio Stefani, que accompanhava Guedes na visita ao hotel Bella Vista, bem na esquina da rua Monte Alegre com a Mauá (hoje Paschoal Carlos Magno), onde morei e onde morava o memorialista Antonio Carlos Villaça, que também apparesce naquelle curto video mudo, agora digitalizado e youtubado. Si eu pudesse calcular o valor historico de taes imagens... inclusive porque Villaça não deve ter muitos registros septentistas filmados. Digo "valor historico" em termos de historia pessoal, tão importante quanto nossa linha do tempo no facebook, ou seja, infima.
Citando o conto de Guedes: {Encontramos Glauco giboyando o almoço, em companhia de outro morador do Bella Vista. Um subjeito gordo, de longa barba grisalha e ar beatifico de monge: o escriptor Antonio Carlos Villaça. Depois das formalidades, pedi licença p'ra que Astroman capturasse o momento com a super-8. Lembro que Villaça fallava de Rilke, dizia que o poeta era um "creador kosmico", porque fundia, em si e na obra, o character religioso, ethico e esthetico. Commentei que tinha lido CHARTAS A UM JOVEN POETA, e elle observou que nessa obra Rilke postulava a formação humana como fundamento da educação esthetica. No mesmo tom sereno, Villaça disse que precisava fazer a sesta. Antes de retirar-se, perguntou meu nome, e me prometteu "um presentinho de boas-vindas". Figura gentilíssima. }
Retornemos ao presente. No banco da frente, vão Jorge dirigindo e Akira filmando. No de traz, Chicho e Salô, cada um com a cara para fora da sua janella, orelhas ao vento, lattindo para todo mundo, incluindo as bassetinhas e os outros bassetudos advistaveis pelo caminho, até chegarem ao Ibirapuera, quando as toucas são collocadas para que as orelhonas não se arrastem pelo chão. Os dois baixotes são soltos no "cachorrodromo" e Akira lhes registra as correrias e estrepolias em meio à variada matilha de cockers, beagles e poodles. Sem fallar, claro, na salsicharia dos dachshunds, nunca antes tão populosa nesta cidade. Já mencionados em chronicas anteriores, os quattro dispensam appresentação, mas o detalhe da camera do Akira eu preciso sublinhar. Elle filma tudo, photographa tudo, transfere para archivos digitaes incrivelmente volumosos, copia em midias physicas ou posta na rede, emfim, faz miséria com as imagens recolhidas num mero passeio domingueiro...
E eu fico aqui em casa, philosophando sobre a transitoriedade da condição humana e sobre a obsolescencia da technologia. Como serão documentados os passeios dos bassethounds no seculo XXII? Serão clones e robots de bassets? A unica conclusão a que chego é a de que alguns minutos de super-8 gravados na decada de 1970 podem ter a mesma relevancia cultural ou biographica de annos e annos de filmes digitaes armazenados no nosso seculo. "Ou não", diria Sergio Sampaio.
Só espero que com os poemas as coisas sejam menos inexoraveis. Será que cinco mil sonnettos compostos agora valem tanto quanto uns cincoenta na era camoneana? Ainda bem que não existem poemometros de alta precisão capazes de acquilatar taes subjectividades. Fiquemos, pois, com as differentes datas para celebrar a poesia, o que ja reflecte cabalmente a actual bagunça de criterios e valores...
Despeço-me com estes versos que ninguem comporia na epocha de Camões e talvez ninguem no seculo vindouro.
SOBRE OUTRO EXTRANHO NO NINHO [sonnetto 2764]
Emquanto la morei, não me occorreu
cruzar com um famoso: a cruzar vim
com outro maldictão egual a mim,
Sampaio, o que calou o Zebedeu.
Com Raulzito Seixas bem se deu,
mas era mais sambista, por assim
dizer, que quem no rock achasse um fim,
um meio, ou um inicio, esse plebeu.
Botou bloco na rua, mas não quiz
ficar indo ao programma do Chacrinha
o resto da vidinha, é o que elle diz.
Seu samba é differente, pois não tinha,
assim como o Roberto, ou como o Assis,
origem carioca, ou como a minha.
DIA DA SALSICHARIA [sonnetto 5050]
Que coisa interessante! Finalmente
alguem nisso pensou! Fez-se o primeiro
"Passeio de Bassês" e até me inteiro
que está no kalendario, annualmente!
Nas festas da cidade, agora, a gente
ja pode vel-os junctos! Esse arteiro
cachorro salsichudo acha parceiro
à bessa e, nessa marcha, bem se sente!
O povo para, applaude, maravilha
os olhos nessa bella passeata
que, em preto ou tom marron, fascina e brilha!
Seus donos orgulhosos são da patta
tortinha e curta! Exhibe-se a matilha
no parque, abbrilhantando mais a data!