Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 27, 28/05/2015

SOBÁ

                 Hoje quero comer sobá. Aquele macarrão japonês de trigo sarraceno, mergulhado num molho de shoyo e gengibre, com pedaços de carne, ovos mexidos, salsinha e cebolinha picadas. Tudo numa cumbuca funda e fumegante.

                 O sobá foi trazido pelos imigrantes originários da ilha de Okinawa, que chegaram ao sul de Mato Grosso em 1908. Os japoneses espalhavam suas bancas pela feira central, cheias de frutas e verduras multicores e, num cantinho reservado, atrás de cortinas de plástico, comiam a iguaria. As pessoas curiosas se interessaram e o sobá acabou se tornando uma comida típica.

                 Okinawa é uma província de ilhas que formam um arquipélago perto da China, da Coreia, da Indonésia e da Polinésia. Por sua posição estratégica, transformou-se num importante entreposto comercial. Tem uma história particular, diferenciada do resto do Japão, pois sofreu forte influência da dinastia chinesa nas vestes e nas danças folclóricas. Depois da segunda Guerra Mundial, permaneceu sob a administração dos Estados Unidos, que ali instalaram bases militares. Somente em 1972, Okinawa, com seus telhados vermelhos com estátuas douradas de leões e dragões, foi devolvida ao Japão.

                 Foi perto da feira central, para onde os okinawanos traziam hortaliças frescas colhidas das plantações em chácaras que rodeavam a cidade, que morei e criei meus filhos. Perto das casas onde se encostavam caixotes e caminhonetes apinhadas de legumes. Nas imediações dos colégios tradicionais, pois os okinawanos sempre procuraram dar a melhor educação aos seus descendentes, que se tornaram profissionais liberais e políticos.

                 Quando eu comer o sobá, farei uma viagem de volta ao passado pelo cheiro e pelo gosto, como o escritor francês Marcel Proust ao tomar chá e provar os bolinhos em formato de concha, chamados “madalenas”. Segundo Proust, depois de saborear esse singelo lanche foi que surgiu a ideia de escrever o romance Em busca do tempo perdido, um dos principais clássicos da história da literatura. Publicado em sete volumes entre 1913 e 1927, o famoso chá com madalenas aparecia logo no primeiro livro da série: No Caminho de Swan.

                 O sabor fez o narrador-protagonista reviver a infância, penetrar em tudo o que ficara escondido no sótão da memória. O chá com madalenas foi uma espécie de passagem sinestésica para que ele reencontrasse a chave do baú, os mapas para lugares esquecidos e reminiscências com as pessoas.

                 Nesta noite de chuva, quando o macarrão temperado de shoyo e gengibre tocar o meu paladar, estremecerei. Algo extraordinário acontecerá dentro de mim. Um prazer delicioso virá à tona. Esquecerei os problemas da minha vida, os pequenos e grandes infortúnios, as frustrações que me corroem. Não me importarei com os desastres, com a atmosfera apocalíptica de fim do mundo, nem com a sensação de que tudo é breve e ilusório. À primeira garfada, vou me encher de uma preciosa essência que está em mim. De um êxtase ligado ao gosto do sobá, da farinha se derretendo em minha boca, mas que ultrapassa a tudo isso, pois é misto de satisfação e autoconhecimento.

                 Descobri um restaurante rústico que vende sobá. Atravessarei elevados, túneis, avenidas, para chegar lá. Hoje não será mais um dia triste e sombrio. Ah! Como ficarei alegre comendo sobá.

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