Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 43, 18/9/2015

CHAPÉU

                  Essa foto do poeta Mário de Andrade, considerado o Papa do Modernismo, com seu queixo largo, óculos de aros redondos e chapéu panamá branco com fita de gorgorão preta, me fez lembrar do meu pai. Ele tinha um chapéu igual, que usava com terno de linho claro. Imagino que os dois, naquela distante São Paulo dos anos quarenta, poderiam ter pego juntos um bonde elétrico, as fagulhas se soltando pelos fios e cabos e percorrido a cidade da Barra Funda até o Teatro Municipal, onde saltaram em frente às escadarias.

                   É apenas um devaneio. Uma licença poética. O certo é que os cavalheiros daquela época traziam as cabeças, as visões de mundo e os pensamentos cobertos. Assumiam com elegância as suas responsabilidades. Havia um caráter transcendente, uma realização bem sucedida no simples ato de pôr e tirar o chapéu. A liberdade de mudar de ideias.

                   Outro poeta, Manuel Bandeira, o João Batista do Modernismo, amigo e correspondente de Mário, com quem trocava cartas sobre folclore, viagens, descobertas estéticas, escreveu um poema intitulado “Momento num café”. Trata-se de um instantâneo do cotidiano captado pela lente do poeta que flagra o ser humano diante da inexorável realidade da morte. Um enterro passava pelos homens que se achavam num café. Eles tiram o chapéu maquinalmente, saudando o morto, distraídos, absortos, confiantes no borburinho da vida. Um deles, porém, se descobre com um gesto mais largo, mais demorado. Aperta o chapéu contra o peito. Olha o esquife longamente. A expressão de funda melancolia. Este sabia que a vida é uma agitação sem fim, feroz e fugaz. Somente esse refletiu com sinceridade que somos misto de alma e matéria e que essa se extingue, como um vapor que aparece por pouco tempo e depois se desvanece.

                   Muitos homens ficaram marcados por seus chapéus: o de duas pontas de Napoleão Bonaparte; o chapéu coco de Chaplin; o de couro do cangaceiro Lampião; o de abas caídas de Santos Dummont. Chapéus mágicos são os dos cozinheiros. Os quepes azuis dos capitães no convés do navio. E os reis, como um dom vindo de cima, exaltam os valores da cabeça com coroas de pontas, de raios, de pedras preciosas. Jesus foi coroado de espinhos que o feriram com setas de maldade. Virgílio, poeta da Antiguidade latina, afirmava que os deuses voltavam as costas aos que se apresentassem diante deles sem coroas de louros, espigas ou mirtos.

                   As damas também se ornamentavam com chapéus. Matisse, o artista francês, de temperamento nervoso, que atingiu cumes de beleza, pintou “Mulher com chapéu”, retratando sua mulher, Amélie, ela mesma uma confeccionadora de chapéus, com um chapéu inusitado, que parece ter sido feito de flores, tules, manchas, pinceladas azuis, róseas e arroxeadas. Chiquinha Gonzaga andava pelas ruas do Rio de Janeiro com um casquete enfeitado de camélias brancas, símbolo da luta pela libertação dos escravos. A rainha Elizabeth, do alto de décadas de reinado, porta chapéus graciosos, que aumentam sua dignidade firme e serena. Carmen Miranda amarrava turbantes dourados com frutas e balangandãs tropicais. As fadas aparecem nos sonhos com cones encimados por estrelas. Cleópatra usava uma tiara com duas cobras simbolizando o Alto e o Baixo Egito.

                   Mário de Andrade ficava mesmo distinto de chapéu panamá. E eu, quando entrava no antigo sobrado e via o chapéu pendurado no gancho da chapeleira, sentia-me feliz. Era sinal de que meu pai estava ali. (São tristes as casas sem pai).

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