EPHEMERDAS, por GLAUCO MATTOSO

GLAUCO MATTOSO é poeta, auctor de mais de cinco mil sonnettos. Actualmente não compõe mais nesse molde, mas ainda practica outras estrophações.
Para informações sobre a orthographia que adopta, suggere-se accessar:
http://correctororthographico.blogspot.com.br

Coluna 21

8 DE ABRIL/2016: DIA DO BRAILLE
16 DE ABRIL/2016: DIA DA VOZ

UMA FASCINANTE OFFICINA FESCENNINA

[1] Alli pelo final dos annos septenta, quando eu editava o poezineJORNAL DOBRABIL ainda em folhas soltas dactylographadas e xerocopiadas,Augusto de Campos me incentivava e, ao contrario do que se possa suppordum apollineo poeta concretista, compartilhava meu dionysiacoenthusiasmo pela poesia fescennina. A fim de supprir o JD com materialde que eu não dispunha, Augusto não só cedeu-me um sonnetto quetraduzira de Giuseppe Belli como emprestou-me livros difficeis de acharpor aqui, a exemplo da ANTHOLOGIA DE POESIA PORTUGUEZA EROTICA ESATYRICA: DOS CANCIONEIROS MEDIEVAES À ACTUALIDADE, organizada por Natalia Correa, que hoje está bem reeditada e disponivel. Comprehensivelmente, não tinhamos obra similar que inventariasse o turpiloquente legado tupyniquim. Só quando, ja cego e sonnettista, eu entrava pelo novo seculo a publicar minha propria lyra pornosiana, foi que sahiu a ANTHOLOGIA PORNOGRAPHICA de Alexei Bueno, parcialmente abrangente para os dois lados do Atlantico. Seria preciso agguardar mais uma decada até que viesse à luz a monumental empreitada de Eliane Robert Moraes, ANTHOLOGIA DA POESIA EROTICA BRAZILEIRA, a mais exhaustiva e investigativa, que só pecca pela ommissão de alguns representantes da chamada "poesia de bordel" (repentistas, glosadores e chordelistas que povoam a cantoria popular nordestina) ou dos representantes oitentistas do MAP (Movimento de Arte Pornô): Eduardo Kac, Cairo Trindade e outros inicialmente anthologiados por Leila Miccolis, ella propria já reconhescida, à epocha, como madura auctora duma visceral e virulenta poesia feminina. A despeito de taes ommissões, a compilação da professora Eliane alcança a geração de Roberto Piva e a minha mesma, contemporaneos que somos da miccolissima Leilinha. Uma das virtudes da obra, outrosim, foi a inclusão de dois poetas satyricamente homosexuaes que, sem pretensões academicas nem editoriaes, compuzeram e compilaram a varias mãos e masturbações uma collectiva collectanea intitulada CANTHARIDAS. Assim os situou Oscar Gama Filho na appresentação do livro publicado em 1985:

{Paulo de Tarso Vellozo e Guilherme Sanctos Neves foram os responsáveis pela sua concepção, montagem, dactylographia e redacção. Com fins satyricos, porem, attribuiam a outros a auctoria dos artigos e dos poemas. O sonnetto "Vinte e quattro..." refere-se à coincidencia entre duas datas: Jayme Sanctos Neves, o satyrizado, que nascera no dia 24, estava completando vinte e quattro annos. Como Jayme veiu ao mundo em 1909, esse texto só pode ter sido produzido em 1933. Portanto, 1933 fica estabelescido como anno-base para a creação de CANTHARIDAS.}

Esses trez nomes, identificados pelas iniciaes P, G e J, assignam dezenas de sonnettos, dentre os quaes seleccionei os que aqui commento. Tenha-se em mente que, na primeira metade do seculo passado, a iniciativa daquella dupla de intellectuaes era clandestina e arriscada a comprometter o futuro profissional de cada um que adherisse ao abjecto projecto, quer fosse a carreira medica, quer fosse juridica ou pedagogica. Foram elles, portanto, mais corajosos que eu, quando comecei a explicitar minhas adventuras erotico-poeticas em pleno regime dictatorial post-1964. Eis como os retracta (disfarsando-os de nordestinos) outro parceiro de licenciosidades, appellidado Lapis, Lapisu ou Lapisuinha, quebrando o pé do quarto verso mas quebrando tambem quaesquer reservas de singello sigillo, lembrando que seria suppostamente de Vellozo (natural de Victoria, Espirito Sancto) a auctoria de varios sonnettos assignados por outros membros da tertullia:

              OS TREZ FRESCOS DE ALAGOAS [L]

              Guilherme, Paulo e Jayme, trez bandalhos,
              Putanheiros terriveis, sem eguaes,
              Em vez de abboccanharem bons caralhos
              Vivem a fazer sonnettos immoraes. [hendecasyllabo]

              Guilherme, ja velhote, é bem matreiro,
              Bolina até veados, no cinema.
              Nas horas vagas, consta que é padeiro,
              Recebe patos do Francisco Gemma.

              O Paulo quer ser puto e muito sente
              Não poder engolir grossa bichoca,
              Pois o kysto do cu fica na frente...

              O Jayme, que tem sempre o pau bem rijo,
              De uma menina, percebendo a toca,
              Metteu o dedo-sonda... e tirou mijo!

Quanto ao sonnetto referido por Gama Filho, é o que se segue, anotado na edição em livro como parodico dum sonnetto bocageano que alguns attribuem a João Vicente Pimentel Maldonado, cujos versos iniciaes dizem: "Não lamentes, ó Nize, o teu estado; / Puta tem sido muita gente boa;". Logicamente, nem Bocage, nem Maldonado teriam commettido as catalexes e dysrhythmias que assignalo e, mais addeante, apponcto em outros casos.

              VINTE E QUATTRO... [P]

              Não lamentes, ó Jayme, o teu tormento,
              Puto tem sido muito cabra forte;
              E, mesmo, a data do teu nascimento [dysrhythmico]
              Te obriga a ser veado até a morte!

              A tua bunda, o teu andar dengoso,
              Teu triste palavrorio dissoluto,
              Faziam-me pensar: "Paulo Vellozo,
              Será que o teu amigo Jayme é puto?"

              Dobrando o vinte e quattro, estás fagueiro,
              E deante de tal coincidencia,
              Accredito que és mesmo bundeiro... [enneasyllabo]

              E ahi é que a cousa se estrombica, [enneasyllabo]
              Pois conhescendo ja tua tendencia,
              Só posso dar-te, de presente, a picca...

[2] Naquella phase septentista e dobrabilesca meus versos, comquanto escatologicos, pautavam-se pelo librismo marioswaldiano, pelo colloquialismo marginal e pelo graphismo concreto. Minha attitude em relação ao sonnetto era a do admirador parodista e do leigo iconoclasta. Dahi que, em 1985, quando o DOBRABIL ja tinha virado livro e virado a pagina, me maravilhei ante a publicação do volume das CANTHARIDAS E OUTROS POEMAS FESCENNINOS pelo sello paulistano Max Limonad: aquelles sonnettos homoeroticos, a um tempo classicistas pela forma e contraculturaes pela ousadia libertina/libertaria, configuravam, ao meu olhar, tudo quanto eu almejaria compor caso fosse eximio practicante do genero e unisse a putaria mais escancarada ao mais fechado rigor estichologico. Tive, então, a mesma impressão registrada por Reynaldo Sanctos Neves (renomado escriptor e filho de Guilherme) na orelha do livro, quanto ao quesito qualitativo:

{Embora seja eu quem o diga, e sou suspeito, tendo ouvido muitos desses poemas quasi desde o berço [...] é só abrir uma pagina a esmo e ler. Veja que são poemas (em sua maioria sonnettos) extraordinarios tanto em seu aspecto formal como em sua imagistica original e escabrosa, em sua linguagem rica e irreverente, salpiccada de saborosos palavrões hoje em desuso, poemas que ainda se characterizam por um fio conductor que, conforme assignala Oscar Gama Filho em sua appresentação, accaba dando um toque de romance à obra como um todo.}

Sigamos a suggestão de Reynaldo e folheemos ao acaso para acquilatar a validade de suas palavras. O sonnetto abbaixo apparenta guardar as characteristicas mencionadas. Sinão, vejamos:

              CURUBA [J]

              Chegou-se a mim, o puto, e sem ter pejo
              Escorregou-me a mão pela virilha,
              Fingindo procurar um percevejo;
              E, pouco a pouco, abriu-me a barriguilha.

              Puxou-me para fora o p'ra-ti-leve
              E cocegas me fez co'a leve mão.
              Depois, entremostrou-me o cu de neve
              E o rosado perfil do seu bujão.

              Pegou-me, do caralho, no gargalo,
              E uma pivia mascou-me, à Ruy Barbosa...
              Mas sentindo, do cu, coçar o callo,

              Elle teve uma idéa genial:
              Deixou ficar em meio a gloriosa,
              E fez do meu caralho – Mitigal!

À parte a necessidade de notas para explicar que uma "pivia à Ruy Barbosa" seria uma "masturbação complementada pelo gesto de passar uma das mãos sobre a glande" e que Mitigal seria uma "pomada para alliviar a coceira", fica patente o colorido da linguagem, que emprega expressões bem castiças em meio a outras mais debochadas, como "barriguilha" em logar de "braguilha", "p'ra-ti-leve" em logar de penis, alem de "bujão", "gargalo", "mascar" e "gloriosa". Sem duvida, um quadro de obra-prima para retractar a scena masturbatoria, que se emmoldura pela correcta composição dos decasyllabos, equilibrando heroicos classicos e martellos aggalopados, remactados por rhymas que, si não são ricas, são felizes, entre versos agudos e graves, tudo em perfeita proporção. Vale accrescentar o que vae annotado na edição de 1985, procedimento que farei doravante, sempre entre chaves, nas demais transcripções: {De Jayme para Paulo, a se considerar o "callo" do verso onze como uma referencia ao seu famoso kysto. "Curuba" é, segundo o Aurelio, uma "pequena pustula pruriginosa", o que justifica a tirada do fecho do poema.}

[3] Claro que, pela minha optica erotica, a veia viciosa dos vatesvictorienses emphatizava demais a sodomia em detrimento da pederastia,ou, para empregar uma concepção menos hellenistica, privilegiava apenetração anal emquanto minimizava o papel do sexo oral, a mim tão caro e autobiographico. Fetichismo e sadomasochismo, mais autobiographicos ainda, eu nem esperava encontrar naquelle repertorio de epigrammas reciprocamente sonnettados e compartilhados em saraus entre amigos, num circulo privado e ambientado na capital capixaba dos annos trinta em deante.

Seria pedir demais que um unico verso delles alludisse à podolatria, mas a escassez de scenas de fellação me deixou um tanto desapponctado. Não obstante, a consistencia litteraria e o pioneirismo thematico de tal obra não me incutiam duvidas accerca da sua importancia historica. Agora que Eliane Moraes as resgatou em sua anthologia, occorreu-me revisitar as CANTHARIDAS, que coincidentemente voltaram às minhas mãos num surradissimo exemplar presenteado pelo cearense Sylvio Sanctos, meu collega de Academia Canindeense, depois que duas mudanças extraviaram parte da bibliotheca na qual se achava meu exemplar original.

A escassez a que me refiro somente se exceptua em casos oralistas como estes abbaixo, francamente "concedidos" em meio a tanta enrabação. Assignalei duas quebras de pé, uma para menos, outra para mais, do parametro decasyllabo, sendo que o verso claudicantemente alexandrino poderia adjustar-se si fosse redigido assim, às custas duma apherese e duma ecthlipse: "Emfim, va la! - Não 'stás co'esquentamento?":

              ARCO-IRIS [P/J/G]

              [P] Attracado ao manzarpo do Ramalho,
              [J] O Nino, sob os raios violeta,
              [J] Arreganhando o rubronegro talho,
              [G] Chupa-o com gosto, qual rosada teta.

              [G] Emquanto chupa o advermelhado malho,
              [P] Rebolla o alvo cu do sacaneta, [enneasyllabo]
              [J] E o atrophiado e pallido caralho
              [P] Murcho balança, à mingua de punheta.

              [J] A do Ramalho, furtacor bichoca,
              [G] Se intumesce, ja roxa de tesão,
              [P] E a cabeça azulada quasi poca...

              [P] Vendo a coisa ja preta pro peru,
              [J] Ramalho, p'ra evitar uma explosão,
              [P] Abbafa a piça no irisado cu!

{Amigo intimo dos auctores e medico, não excappa o Nino de protagonizar esta comedia, fazendo papel de homosexual passivo às voltas com um collega medico, o Ramalho. A adjectivação do sonnetto é toda ella constituida de termos relativos a cores, appresentados em grypho no original.}

              O QUE ELLE NÃO CONTOU... [J]

              Foi na Praia da Costa, attraz do Lucio:
              Eu estava enxugando a gran-caceta
              E puxara p'ra traz o meu prepucio,
              Descobrindo, do pau, a maçaneta,

              Quando o fresco Tarsinho, que commigo
              Mudava a roupa e tambem 'stava nu,
              Vendo-me o pé-de-porco sob o umbigo,
              Sentiu negra e feroz tesão de cu.

              Fingindo procurar alguma cousa,
              Logo s'agacha sobre o meu caralho
              E a beiçola sedenta nelle pousa.

              Com phrenesi, chupou-me a porra immunda,
              E tão perfeito foi o seu trabalho,
              Que nem pude, depois, comer-lhe a bunda.

{Replica de Jayme, refazendo a farsa à sua maneira e, logicamente, invertendo toda a sua optica satyrica. O Lucio era como se chamava um bar na Praia da Costa, cujo banheiro, nos fundos do quintal, era usado para trocarem de roupa.}

              TESUINA [P]

              "Larga-me o pau! Não brinca! Ora que porra!
              Assim não, que m'arranhas, Lapisu!
              Não podes mais me ver a gran-pichorra,
              Sem ter vontade de enfial-a ao cu?

              Não fodo! Ja te disse que não fodo,
              Pois me deixas o pau sempre cagado!
              Não chupa, Lapisu! Que o mellas todo...
              Deixa o puto do nabo sossegado!

              Não me lamba os colhões! Eu sou cosquento...
              Tu pensas que os meus ovos são jujuba?...
              Emfim, va la! - Não estás com esquentamento? [alexandrino]

              Deixa-me ver... – Que bunda magra e lisa!
              Puta que o merda! Mas quanta curuba?!
              Não, Lapisu! Só fodo com camisa...

{Volta Paulo a satyrizar Lapisuinha, para não perder o habito, appresentando-o mais uma vez como homosexual passivo insistente e até inconveniente em suas tentativas de seducção. O sonnetto se distingue dos demais por sua estructura em forma de dialogo.}

[4] Foi divertido saborear novamente aquelle "fanchonismo" thematico-estylistico que muitos tomariam, hoje, por anachronico e hermetico, mas, agora que os leio com os ouvidos e não mais com os olhos, os sonnettos de CANTHARIDAS ja não se me affiguram tão modellares. Depois de compor milhares do typo e de elaborar um tractado de versificação, estou mais attento aos tropeços e cochilos, a começar pelos meus proprios. Logo, posso apponctar vicios dos quaes tambem padesci e que hoje evito, o que não desmeresce os exemplos que ora transcrevo e reorthographo. O tropeço mais flagrante é o metrico, do qual, por signal, não excappou o proprio Paulo Vellozo ao fingir que criticava versos alheios, incorrendo, elle proprio, na "metragem manca" que imputava aos confrades, como no exemplo abbaixo, este sim, metricamente correcto:

              MERDORRHÉA [P]

              Ah Gordo! Si te pego em Pau Gigante,
              Si pudesse algum dia aqui te ver,
              Tal bichocada dava-te ao cagante
              Que nunca mais cagavas com prazer...

              Si eu te pegasse aqui, Gordo maroto,
              Co'a tua pudicissima regueira,
              Havia de fazel-a, Gordo escroto,
              Transformar-se em babaca de rampeira.

              Os teus quattorze versos são um mixto
              De fedentina e putaria franca,
              Diffamando o meu nobre e roseo kysto.

              Emfim, comtigo, nunca mais me metto,
              Pois são teus versos, de metragem manca,
              Caudaes de merda, à guisa de sonnetto.

{Replica de Paulo, que na occasião andava por Pau Gigante, ao sonnetto XLI, de Jayme, a quem tracta por "Gordo". Note-se, no fecho do poema, mais um exemplo de satyra coprologica ao fazer poetico alheio.}

[5] Quanto ao tal "nobre kysto" do qual Vellozo se vangloriava, tracta-se do mais original e caricatural "personagem prosopopaico" do livro, motivo das maiores gozações accerca daquelle rectal obstaculo às penetrações obsessivamente practicadas pelos actores/auctores. A referida excrescencia characteriza typico caso de metonymia (mais precisamente, de synecdoche, figura que explanei no livro POESIA QUESTIONADA), similar à minha fixação no pé que symboliza o sadismo e a oppressão do mais forte sobre sua victima. No caso, a symbologia reside na sodomia como peccaminosa e delictuosa perversão em tempos ainda muito puritanos para que se admittisse abertamente uma abertura anal tão... profunda. Eis uma sequencia de sonnettos nos quaes o celebre kysto se immortaliza na penna dos parceiros de Vellozo (si não do proprio), resalvados os versos de pé quebrado e o emprego do termo "tesão" no feminino, uma troca de generos mais corrente naquella epocha do que na actualidade, bem como relevados devem ser os versos dysrhythmicos, isto é, que não se encaixam nos metros heroicos (puro, impuro ou martello aggalopado), nem no metro sapphico, normaes padrões do decasyllabo:

              O SACANAZ [J]

              Dizem ahi que um tal Paulo Vellozo, [heroico impuro]
              Putanheiro maior que tenho visto, [martello]
              Vate capenga, alem de malcheiroso, [heroico impuro]
              Tem na prega do cu seboso kysto. [martello]

              Amante de tesudos garanhões, [heroico puro]
              E conhescido lambedor de connas, [sapphico]
              Vivia sempre a esvaziar colhões [sapphico]
              De libidinosissimos fanchonas. [heroico impuro]

              A historia do seu kysto é bem immunda: [heroico puro]
              Estrepou-se o coitado, dando a bunda, [martello]
              A quem tinha, a foder, serrano pau. [martello]

              E a tenção lhe ficou de, em toda a vida, [martello]
              Fechar o cu a piça tão fornida, [heroico puro]
              Entrar para um convento e ser vestal! [heroico puro]

{Eis que surge Jayme em sua primeira (não comptando a Homenagem) contribuição a CANTHARIDAS, pondo em relevo o kysto que Paulo teria no anus, e que se tornará um dos themas favoritos da collectanea. Aqui Jayme estabelesce tambem, cabalmente, a linha satyrica que vae preponderar ao longo da obra, ou seja, a characterização burlesca de cada um e de todos como si fossem putanheiros militantes, adeptos sobretudo de practicas homosexuaes. No primeiro tercetto Jayme appresenta, dentro dessa linha, uma explicação para a origem do tal kysto. Na gravação de 29 de septembro de 1974, aliaz, Paulo desmente até a existencia do kysto. "Não é kysto. É o coccyx. É o meu coccyx, que é mais prolongado." A clausula "a quem tinha, a foder, serrano pau" refere-se a um certo Jurandy, morador da Serra, municipio vizinho de Victoria, que passava por ter um membro advantajado e que, graças a isso, volta e meia reapparescerá nos sonnettos.}

              EMPATA-FODA [J]

              Redondo cu a palpitar fogoso, [sapphico]
              Em meio a um bujão gordo e rosado, [enneasyllabo
              Tinha um pello macio e bem sedoso, [martello]
              Em volta ao caprichoso pregueado. [heroico puro]

              Tal o cu que um dia eu quiz comer, [enneasyllabo]
              Arrectado qual frade garanhão, [martello]
              E co'o caralho duro e a tremer [enneasyllabo]
              De justificadissima tesão. [heroico impuro]

              Minha bichoca entrava docemente [heroico impuro]
              Pela mucosa quente, deslisando, [heroico impuro]
              Quando batte um caroço de repente! [martello]

              Não posso me conter: "Paulo, que é isto?" [heroico puro]
              E elle, ainda de gozo se babando: [martello]
              "Não se incommode, não, é o meu kysto..." [enneasyllabo]

 

              SEU RABO [G]

              Ó cu insaciavel! Ó cu guloso! [dysrhythmico]
              Cu Leonidino! Cu Mariquinheiro! [heroico impuro]
              Que só pensa no torpe e sujo gozo [martello]
              Do seu dono, safado e putanheiro! [martello]

              Olhe aqui, Paulo de Tarso Vellozo: [dysrhythmico]
              Dê modos ao seu cu, ao seu trazeiro, [heroico puro]
              Que quando picca vê, fica dengoso, [heroico puro]
              Abre-fechando, todo prazenteiro... [heroico impuro]

              Diga-lhe que se contente com o pisto [dysrhythmico]
              A que você, prudente, chama kysto, [heroico impuro]
              Escondendo aquella origem infamante! [hendecasyllabo]

              E si elle não se der por satisfeito, [heroico puro]
              Dizendo-se buraco pouco estreito, [heroico puro]
              Enterre-lhe na prega o Pau Gigante! [heroico puro]

{Guilherme contra Paulo, seguindo a mesma linha gaiata a que ja nos habituamos. Os adjectivos do verso 2 ("Leonidino" e "Mariquinheiro")foram cunhados a partir dos nomes de conhescidos homosexuaes da epocha, Leonidas Resemini e Mariquinhas. O primeiro tercetto e o verso final repisam mais uma vez elementos ja tradicionaes na obra, como o kysto de Paulo e a commarca de Pau Gigante, onde era promotor.}

              PREVIDENCIA [J]

              Emquanto agguardo o sonnetto immundo [enneasyllabo]
              Que o teu seboso kysto vae parir, [heroico puro]
              Fico abysmado num pensar profundo, [sapphico]
              A cogitar em que é que vaes bullir. [heroico impuro]

              Talvez a tua Musa putanheira [heroico puro]
              Tome por mira ou tome por baliza [heroico impuro]
              A minha pudicissima regueira, [heroico puro]
              Que até para cagar se ruboriza. [heroico puro]

              Talvez, ó Musa infame e meretriz! [heroico puro]
              Mexas co'a voz amena do seu Zuza [heroico impuro]
              Ou co'o recto perfil do meu nariz... [martello]

              P'ra te evitar essa prenhez excusa, [sapphico]
              Eu, antes que tu cagues o sonnetto, [heroico puro]
              No teu redondo cu o pau te metto... [heroico puro]

{Curioso sonnetto em que Jayme se antecipa à satyra que agguarda de Paulo, ja prevendo acchincalhes ao jeito do sonnetto XXXIV. O espirito altamente ironico de CANTHARIDAS transparesce muito vivido nos versos 10 e 11 deste sonnetto, em que Jayme se refere à "voz amena do seu Zuza", que era fanhoso, e ao "recto perfil do meu nariz", que era - e é - grande e curvo como o de um judeu.}

[6] O proprio portador do kysto immortal delle se jacta, sem perder opportunidade de exhibir sua erudição, uma vez que parodiava Bocage (ou o Abbade de Jazente, segundo alguns contestadores da authenticidade bocageana), cujo sonnetto analysei no livro DESBOCCADOS E CABELLUDOS e copio mais abbaixo. Aliaz, era commum entre os cantadores cantores das CANTHARIDAS as parodias, como exemplifico no topico seguinte.

              CAGADAS [P]

              Placidamente numa moita estava
              Cagando ao vento, uma cagada farta!
              E no momento em que o bujão limpava,
              Chegou-me a tua fedorenta charta.

              Depois de lel-a toda, é que notei
              Que tinha, ainda, o kysto engordurado.
              Servi-me, então, da charta, e me vinguei
              Passando-a no logar mais adequado...

              Depois, antes de as calças levantar,
              Foi que vi a segunda producção;
              E como não queria mais cagar

              Nem deixar sem resposta a tua Musa,
              Abri as pernas e, com devoção, [dysrhythmico]
              Peidei para você e para o Zuza.

{Residindo em Pau Gigante nessa occasião, Paulo teria recebido pelo correio ("Chegou-me a tua fedorenta charta") os sonnettos XLI e XLII de Jayme, aos quaes replicou com este e o anterior. Tudo leva a crer que a "segunda producção" (verso 10) se refira ao sonnetto XLII, o que auctorizaria então identificar-se como Paulo o "sagaz advogado" de que se tracta alli. No final, como vinha occorrendo geralmente nos sonnettos de Paulo, sobra uma ferroada tambem para o Zuza, parente de Jayme.}

              [SONNETTO PARODIADO] [Bocage]

              Cagando estava a dama mais formosa,
              E nunca se viu cu de tanta alvura;
              Porem o ver cagar a formosura
              Mette nojo à vontade mais gulosa!

              Ella a massa expulsou fedentinosa
              Com algum custo, porque estava dura;
              Uma charta d'amor de allimpadura
              Serviu àquella parte malcheirosa:

              Ora mandem à moça mais bonita
              Um escripto d'amor que lisonjeiro
              Affectos move, corações incita:

              Para o ir ver servir de reposteiro
              À porta, onde o fedor, e a trampa habita,
              Do sombrio palacio do alcatreiro!

[7] Alem de Bocage, foram referenciaes à satyra velloziana Camões, Bilac e Raymundo Correa, por exemplo. Outro exemplo de sonnetto parodico é este, homonymo do original de Augusto dos Anjos, que requer transcripção addicional:

              VERSOS INTIMOS [P]

              Vês?! De que te serviu tamanho nabo
              E esse par de colhões, tão volumoso?
              Somente o meu caralho – esse guloso –
              Foi amigo sincero do teu rabo.

              Accostuma-te sempre ao meu peru.
              O puto que, no mundo miseravel,
              Mora entre machos, sente inevitavel
              Necessidade de tomar no cu.

              Toma um ovo. Segura esta pichorra.
              A foda, amigo, é a vespera da porra.
              O pau que fode é o mesmo que se esporra.

              Si acaso no teu cu dei algum talho,
              Peida no pau a tit'lo de desforra
              E caga na cabeça do caralho.

 

              VERSOS INTIMOS [Augusto dos Anjos]

              Vês! Ninguem assistiu ao formidavel
              Enterro de tua ultima chimera.
              Somente a Ingratidão – - esta panthera –
              Foi tua companheira inseparavel!

              Accostuma-te à lama que te espera!
              O Homem, que, nesta terra miseravel,
              Mora, entre feras, sente inevitavel
              Necessidade de tambem ser fera.

              Toma um phosphoro. Accende teu cigarro!
              O beijo, amigo, é a vespera do escarro,
              A mão que affaga é a mesma que appedreja.

              Si a alguem causa 'inda pena a tua chaga,
              Appedreja essa mão vil que te affaga,
              Escarra nessa bocca que te beija!

[8] Muitos dos sonnettos de CANTHARIDAS eram compostos a duas ou mais mãos, mas nem sempre resultavam no melhor da collectanea. Uma excepção é o que vae abbaixo, pela faceta escatologica e onanistica que a mim tanto valeu, ao sonnettar, como motivo conductor em innumeros casos. As allusões fecaes, a meu ver, são os condimentos mais appigmentados em outros sonnettos que me chamam a attenção e vão transcriptos na sequencia:

              CONSOLO [J/P]

              [J] Arregaçando a piça, o bom sacana,
              [J] E descobrindo o roxo cabeção,
              [P] O sebo armazenado ha uma semana
              [J] Excorre, esverdinhado, pelo chão.

              [P] Um bodum de caralho se desprende,
              [J] Empesteando o ar em deredor;
              [P] Emquanto a pel' da piça se distende,
              [J] Fica a bichoca cada vez maior.

              [P] Depois da piça bem escramellada,
              [J] E bem limpa do queijo faisandé,
              [P] Tenta dar na cabeça uma chupada.

              [J] Mas não pode! E, feroz comsigo mesmo,
              [P] O Bundinha, p'ra supprir o buchê, [dysrhythmico]
              [P] Se põe, fagueiro, a espunhetar-se a esmo...

{Eis uma satyra que focaliza Guilherme numa scena phantastica de erotismo solitario, a que não falta nem mesmo a frustrada tentativa de autofellação.}

              MUSA FESCENNINA [G]

              Jorra a coprolalia ramellenta
              Cuspindo a baba, babugenta e excusa,
              E o puz pullula e a podridão rebenta
              Cascateante, a cascalhar confusa.

              Fedor s'espalha sob luz diffusa;
              É merda! Molle merda pegagenta!
              E a feder assim tanto, a bosta abusa,
              Da mais fechada e malcheirosa venta.

              Mas que cloaca é essa que assim caga,
              Aos borbotões, bollotas de escorbuto,
              E nella se chafurda e se allaga? [enneasyllabo]

              "Eu sou" - responde ella em tom gottoso, [enneasyllabo]
              "Eu sou a Musa do poeta-puto,
              Chamado Paulo de Tarso Vellozo." [dysrhythmico]

 

              PELO FARO [P]

              Eu estava deitado. O meu caralho
              Dormitava, entre as coxas encolhido;
              Da urethra entreaberta, um fino orvalho,
              Gotta a gotta, pingava, sem ruido.

              Porem, umas aragens catinguentas
              Despertam meu caralho. Este boceja,
              E da urethra escancarando as ventas, [enneasyllabo]
              Ergue a cabeça como quem fareja.

              A veia azul – de baixo – se intumesce!
              O nabo dá corcovos de gymnete!
              Depois, suando porra, se esmoresce...

              E eu, qu'as paixões da piça sei ao certo,
              Penso, fictando o misero cacete:
              "O Jayme andou cagando aqui por perto..."

 

              TO BE OR NOT TO BE [G]

              Cagar ou não cagar, eis a questão
              Que ora enfrenta Renato, pensativo,
              Emquanto tem no rabo o vil tampão
              E agguarda o seu primeiro curativo.

              Cagar ou não cagar... eis o motivo
              Por que sua e tressua o Renatão,
              Ja sentindo – mais morto do que vivo –
              No castanho terrivel comichão...

               – Será que eu dando um peido, devagar,
              Não seria melhor e mais prudente
              P'ra meu olho do cu se accostumar?

              Mas tem receio o pobre do doente,
              E, ja agora: Peidar ou não peidar,
              Eis a questão que lhe fatiga a mente...

{Escripto por Guilherme por occasião da operação de hemorrhoidas a que se submetteu, em fins da decada de 1950, seu amigo Renato.}

[9] Ainda si descomptassemos a frouxidão commum aos versejadores que escandem abusando da dierese (como na cantoria nordestina), uns tantos decasyllabos de CANTHARIDAS cahiriam inevitavelmente na categoria dos que soffrem de catalexe. Menos frequentes são os casos de hypermetria, que não se salvam nem com synereses forçadas. Alguns exemplos de versos catalecticos são estes, garimpados de differentes poemas:

              Pornographicamente é um nababo! [e/é/um]

              Veiu a Orly ficar no seu logar [u/a/or]
              
              Si é o beiçolão, paresce jaca [si/é/o]
              
              Pedi para metter só um pouquinho [só/um]
              
              Encostei-o a um cantho da banheira [o/a/um]

              Do entrecu, na rala pentelhada, [do/en]
              
              Nem massaroca bruta que a espante! [que/a/es]
              
              Por ser irmão do puto e, assim sendo, [to/e/a]
              
              E, apoz o grande e onanesco feito, [de/e/o]

Agora alguns casos de verso hypermetrico, salvo eventual erro de transcripção, todos hendecasyllabos e relativamente faceis de corrigir si os auctores se tivessem detido em escandir com mais cuidado:

              Vivem a fazer sonnettos immoraes.

              Escondendo aquella origem infamante!

              Ou de elephante que accaba de parir!

              E teu caralho inutil e sempre só.

Fique claro que taes versos não compromettem, a meu ver, a integridade lyrica nem a esthetica hedonistica da obra velloziana. Menos compromettedores ainda são os innumeros casos de rhymas pobres, de dysrhythmias, de solecismos e de syllepses, folgadamente compensados pela musicalidade paronomastica e pela riqueza pittoresca dos chulismos e girias da epocha, particularmente nestes synonymos do penis que fogem ao ramerrão entre "pau", "picca", "piça" e "caralho": "bichoca", "caceta", "cates" ou "cátis" (corruptela de "cazzo"), "gerica", "linguiça", "malho", "manzarpo" (variante de "marzapo" ou "marsapo"), "massaroca", "nabo", "p'ra-ti-leve" (variante de "p'ra-ti-vae"), "pau-de-sebo", "pé-de-porco", "peru", "piccalhão", "pichorra", "tatu" e "vergalhão", entre outros.

[10] Concluindo, independentemente de quaesquer quinaus, subsiste o caso litterario das CANTHARIDAS como authentico phenomeno de creatividade collectiva no genero fescennino e na vertente homoerotica, practicamente inegualavel na historia lusophona em termos de laboratorio ou de officina duma contracultura avant la lettre, antecipativa da actual liberação dos costumes e da diversidade sexual. Como obra excepcional que foi, CANTHARIDAS se constitue num accidente de percurso na trajectoria da poesia brazileira, que então attravessava um periodo de transição entre o parnasianismo, o symbolismo e o modernismo, este ainda enfrentando as naturaes resistencias às innovações estheticas. Chronologicamente, tanto a formação quanto a informação de Paulo Vellozo e de seus parceiros só podia ser passadista na forma, embora vanguardista no fundo.

Não seria nenhuma "forçação de barra" adventar um parallelo entre a parca bibliographia em braille disponivel ao publico cego (na qual sempre faltaram obras pornographicas, devido à caretice que cerca o assistencialismo aos deficientes) e a illimitada vastidão de fontes disponiveis aos cegos que teem accesso à technologia cybernetica, como si o computador fallante viesse libertar ou liberar da censura institucional aquelles subjeitos encarcerados pela escripta tactil que os manieta e os disciplina a serviço duma pharisaica moralidade official. Assim como um cego gay, fetichista e sadomasochista, pode não ser um individuo isolado caso se expresse poetica e digitalmente, tambem uma tertullia de gays clarividentes pode voltar a ser porta-voz, na era da recyclagem virtual, duma subterranea parcella da população que, em todos os tempos, manteve-se no armario da conveniencia social.

Nunca é despropositado lembrar que a poesia, a despeito de seu restricto alcance, eventualmente pode ter papel mais revolucionario que o das demais linguagens, sobretudo num contexto onde nem o theatro, nem tampouco o cinema, funccionavam como pretexto satisfactorio para que o artista se assumisse e deixasse inscripto à posteridade seu testemunho de vida, como lograram deixar aquelles dois ou trez heroes dionysiacos que souberam se expressar num discurso apollineo, equilibrando as contradicções e os paradoxos.

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