Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 28, 03/06/2015

MEL DE ABELHAS

                 Sobre a prateleira, frascos de vários tipos de mel. Leio os rótulos: de café, de eucalipto, de laranjeira e de limão. Cada fluído tem um tom, um sabor, uma viscosidade diferentes. Escolho o pote de mel silvestre mergulhado na forma bruta dos favos, recheado de própolis e pólen. Imagino o enxame de laboriosas abelhas que sublimaram o perfume das flores. O prado inteiro de rosas amarelas, focos de incêndio que cabem agora neste único pote. Em breve esse mel pousará sobre meus lábios, a cera derreterá entre meus dentes. Minha alma ficará embriagada de inteligência, brilho e poesia.

                 Por ser um símbolo da realeza, Napoleão Bonaparte escolheu a abelha como emblema da França. A cena está descrita num livro que marcou minha adolescência, o romance histórico “Désirée”, da escritora austríaca Annemarie Selinko. O romance evoca fatos e personagens célebres, com força plástica e humana. Reconstitui todo o panorama da Revolução Francesa e do Império Napoleônico, numa grande visão de conjunto da instituição dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Inesquecíveis e vivos surgem Napoleão, Josefina, o General Bernadotte e Désirée. Em forma de diário, revela o extraordinário destino da burguesinha filha de um comerciante de sedas de Lion, que foi a primeira noiva de Napoleão e acabou como rainha da Suécia.

                 Napoleão desenrola diante de sua “pequena noiva de outrora” uma folha com desenhos. No ângulo superior se via traçada uma enorme abelha e, no centro, um quadrado repleto de abelhas em distâncias iguais. Abelhas para adornar tudo: paredes, cortinas, caleças e, principalmente, o manto de coroação do Imperador. Na noite em que li essa passagem, fiquei tão impressionada que sonhei com abelhas vermelhas, destilando sangue.

                 Como são organizadas as colmeias. Um ateliê de fabricar mel. As abelhas trabalham infatigáveis, orquestradas pela abelha-rainha, nutrida de geleia real, cheia de ovos no ventre. E há os zangões, os machos reprodutores que protegem a colmeia e fecundam as rainhas virgens. Nas tardes quentes e sem vento copulam em pleno voo, pagando um preço alto pela proeza: após a cópula, seu órgão genital se rompe e ele morre. Uma colônia, uma rainha, sexo pleno e trágico. Estariam os homens se transformando em zangões?

                 Em hebraico, o nome da abelha é Dbure, Débora. Débora foi uma juíza descrita no Livro de Juízes do Antigo Testamento da Bíblia. Liderou os israelitas contra o domínio de Canaã. Defendeu uma nação errante, sedenta de espiritualidade. Pessoas vinham de longe consultá-la e resolver contendas. Com autoridade e firmeza ela aconselhava, ao lado de sua tenda, debaixo das palmeiras. Abelha e sacerdotisa, Débora tinha a alma pura dos iniciados purificados pelo fogo e entranhados da doçura do mel.

                 Na mitologia greco-romana, a ninfa Melissa foi sacrificada por seu pai aos deuses e do seu cadáver brotaram abelhas, potência feminina zumbindo e ardendo pelos ares.

                 Examino o pote de mel silvestre, os alvéolos dourados. Eu que também sou abelha, operária incansável em meu sacerdócio, cantarolei baixinho os versos da música “Cio da Terra”, de Milton Nascimento: “Decepar a cana/ Recolher a garapa da cana/ Roubar da cana a doçura do mel/ Se lambuzar de mel.”

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