Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 45, 30/9/2015

DÂNDI

                Charles Baudelaire foi um poeta boêmio, um dândi. Posso imaginá-lo numa casaca azul com botões dourados, a calça estreita de pele de gamo, as botas lustradas, a camisa de babados finalizada por um laço, todo apertado num colete. Tinha o garbo de um cardeal das letras, o mistério de quem conhece a dor do mundo e as paixões, mas permanece impávido, como um albatroz voando nas alturas, entre o eterno e o efêmero. Ser dândi era sua essência, sua realidade. Aspiração de causar espanto pela maneira de se vestir, de se portar, de se cuidar. Pasmar as pessoas pela inteligência, pela sensibilidade, pela imaginação. Misto de vampiro e aristocrata. Ser dândi não era futilidade, era fuga sutil daquele pássaro que pousava no navio com suas asas de envergadura gigante, deixando a turba de marinheiros estupefata. O princípio de sua vida elegante era um pensamento de ordem e harmonia que dava um tom poético a todas as coisas. Uma espécie de dramatização da vida, afinal, a roupa é o mais enérgico dos símbolos.

                “O dandismo” constitui uma das seções do ensaio de Baudelaire “O pintor da vida moderna”, que focaliza a obra do pintor francês Contantin Guys. Foi publicado pela primeira vez, em três partes, em novembro-dezembro de 1863, no jornal Le Figaro . Baudelaire explica que o dândi cultiva o belo em sua pessoa, satisfaz suas inclinações. O gosto pela elegância material é um símbolo da superioridade de seu espírito. É uma espécie de culto de si mesmo. O último rasgo de heroísmo na decadência. É um sol poente, que declina, soberbo, sem calor, cheio de melancolia. O dândi aspira a ser sublime. Vive e morre em frente ao espelho. Tudo nele reflete sua ambicionada glória. Ele despende suas rendas e bens com produtos de arte: livros, quadros, espetáculos musicais e teatrais. Espalha por onde anda toques de nobreza. Ama os brasões, os capelos, os sapatos de solas vermelhas, os perfumes, os sais, os vinhos, as coroas, os barretes, as esporas de prata. Esse sentimento de busca de distinções é uma necessidade da alma humana, uma espécie de sede, pois até o selvagem tem suas plumas, tatuagens, arcos e briga por miçangas.

                Baudelaire tinha a instrução, a linguagem fluente, a graça do porte, o esmero, o trato refinado. Gastou toda a herança do pai em roupas, drogas e álcool. Morou na companhia da mulata Jeanne Duval, a Vênus Negra, no luxuoso Hotel Pimodin, onde conheceu pintores, escritores e marchands . Sua mãe entrou na justiça, acusando-o de pródigo. Sua fortuna teve que ser controlada por um tutor. Morreu sem conhecer a fama, de sífilis e alterações cerebrais. Sempre dividido entre duas postulações simultâneas: uma em direção a Deus e à espiritualidade e outra a Satanás, no desejo da animalidade e da queda.

                Lembrei-me de Castro Alves, o nosso poeta romântico. Lindo, jovem, a densa cabeleira. Vestia sempre paletó preto de casimira inglesa, chapéu gelô, gravata de colorido espalhafatoso. Olhava-se de alto abaixo no espelho e dizia:

                 – Tremei, pais de família! Don Juan vai sair.

                Andava pelas ruas de Recife, sentindo prazer em ser reconhecido, cumprimentado. Uma tarde, esquecendo-se das conquistas amorosas, subiu num banco da praça e gritou:

                 – A praça! A praça é do povo/ Como o céu é do condor!

                Em breve ele próprio seria o condor ferido, o pé amputado depois de um incidente numa caçada, o peito minado pela tuberculose. Febres, hemorragias, delírios. Aos vinte e quatro anos, as esperanças de celebridade e de futuro se acabaram para o dândi.

                O poeta Mário de Sá-Carneiro, amigo de Fernando Pessoa, foi um dândi perdido no labirinto de si mesmo: “Se me olho a um espelho, erro/ _ Não me acho no que projeto”. Nos seus poemas fala sempre dos sonhos que não sonhou e de uma saudade que o faz beijar suas mãos brancas. Declara ter sido Lord na Escócia em outra vida, arrastando sua tristeza sem brilho e o desejo astral de ter desfrutado um luxo desmedido. Aos vinte e seis anos, em meio a uma crise financeira e moral, suicidou-se. Sua vaidade de narciso aliada a uma tendência ao autodesprezo, a uma visão estética feminóide conduziram-no ao abismo. Sua intuição à Baudelaire trouxe, porém, novos horizontes para a poesia portuguesa.

                Baudelaire, Castro Alves, Mário de Sá-Carneiro: pobres poetas dândis, almas que se perderam na vaidade. Pois tudo é vaidade.

                Conheço alguém de uma elegância suprema, de uma graça essencial. É um homem divino que se ocupa de todos com delicadeza. Está sempre pronto para ajudar. Sempre semelhante a si mesmo. É simples e calmo, por isso tem poder. Seduz e atrai sem esforço. Magnético. Aceita as pessoas. Perdoa seus defeitos. É capaz de dizer: “Eles não sabem o que fazem”. Eu me escondo sob sua capa vermelha. E lhe presto culto.

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