Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 29, 09/06/2015

A CONCHA E O MAR

               Meu avô guardava na estante de livros, entre flâmulas e troféus, uma estranha relíquia: uma concha rosada, contorcida como um caramujo. Contava ele que, quando viera de Portugal num navio, durante a viagem atirara sal no mar. Por isso é que o mar ficara salgado. Eu, menina pantaneira, que não conhecia nem mar, nem navio, fantasiava os segredos contidos naquele bojo perolado.

               Encostava a concha ao ouvido como se fosse um telefone de náufrago. O som do mar era nítido, potente. Eu era capaz de pensar que estava na praia, diante do infinito desabar das ondas, da textura da espuma sugada em bolhas pela areia. De longe, do começo dos tempos, vinham o canto das sereias, o tremor causado pelo tridente de Netuno revolvendo o fundo do mar, os ventos tocando os penhascos, a agonia das estrelas soterradas. Visualizava um cortejo de peixes de corpos alongados, saltando pelos costões rochosos e pelos recifes de corais, cavalinhas vorazes se alimentando de moluscos, anchovas azuladas, linguados achatados, merluzas prateadas, couraças e flechas de listras negras. À frente, homens com caudas de peixe e coroas com garras de crustáceos na cabeça sopravam instrumentos em forma de chifres.

               Na Idade Média, numa época de pouca divulgação cultural ou científica, o povo inventava monstros e criaturas que viviam no mar. Na história atlântica de Portugal existem referências, vislumbres de animais reais e imaginários registrados nos famosos bestiários. Havia um naquela estante. Olhava com fascínio a figura do Leviatã, dragão que simbolizava o Mal, misto de serpente e polvo, senhor do mar indomado. O hipogrifo com corpo de leão, cabeça e asas de águia. Profusão de trombas, patas, tentáculos, cascos e barbatanas.

               Rugiriam ainda gigantes dentro dessa concha rosada? Talvez. Réstias de seres do tamanho de ilhas que afundaram, ciclopes de um só olho no meio da testa, resquícios de plantas, impressões de corpos minerais.. Nesse som imemorial não se distingue o possível do impossível. Tudo é incógnita e mito.

               Lembro-me com emoção do dia em que vi o mar pela primeira vez. Foi na cidade de Santos. Sentada na areia, vieram à minha mente trechos do poema “Deus”, do romântico Casimiro de Abreu, que eu decorara na escola: “Era pequena, brincava na praia, o mar bramia, sacudia o dorso altivo. Perguntei à minha mãe: – Que orquestra, que furor, o que pode haver maior que o oceano e mais forte que o vento? Ela respondeu: – Um ser que nós não vemos é maior que o mar e mais forte que o tufão. É Deus.” Meus olhos se encheram de lágrimas diante do mar, dessa força de amor e morte, de fluxo e refluxo, de eterno movimento das marés.

               Mais tarde, quando me apaixonei pela poesia de Fernando Pessoa, em especial por “Mar Português”, do livro “Mensagem”, história das viagens de Portugal, entendi os delírios do meu avô: “Ò mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”. Minha alma deseja passar pelo cabo Bojador, além da dor, além das circunstâncias, além do que vejo e sentir no mar o perigo, o abismo e o espelho do céu.

               A concha em minhas mãos me pareceu de repente uma enorme orelha decepada. Interrompi a sintonia com forças estranhas e divinas. Guardei na estante de livros, entre flâmulas e troféus, a concha retirada do mar. O mar ficou gemendo dentro dela.

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