Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 48, 12/11/2015

BONECAS

             Fui uma menina apaixonada por bonecas. Havia as de pano, com vestidos de chita; as de rosto de louça; a de plástico, com cachos loiros, quase do meu tamanho, um sonho. Eu cuidava bem delas, penteava, colocava nos berços e carrinhos, pois eram os filhos que já desejava ter. Também eram minhas alunas. Eu as colocava em fileiras, fazia chamada no diário de classe, escrevia com giz palavras num quadro-negro e imaginava que elas eram capazes de soletrar. Avaliava sua atenção estática como prova de percepção e inteligência.

             Quando li o Sítio do Picapau Amarelo, identifiquei-me com a Emília, a boneca de trapo, a princípio feia e muda que, a partir do momento que ingeriu uma pílula, passou a falar pelos cotovelos. Criatura atuante e impositiva que dominou o próprio criador, Monteiro Lobato. Acompanhei toda a evolução da boneca: as mutações, as tolices, as curiosidades, o espírito de crítica. Não sei em que livro da coleção, quando lhe perguntam: “– Mas quem você é, afinal de contas, Emília?” Ela respondeu de queixinho empinado: “ – Sou a Independência ou Morte.” A independência, a liberdade, a autonomia, o bem-estar, o poder de tomar as próprias decisões. Eu me achava a própria. Quanto desassombro e orgulho. Hoje, adulta e envelhecida, tornei-me pequena e dependente de algo superior que me guia. O fato é que me diverti tanto com a Emília: o casamento dela com o porco Marquês de Rabicó; as aventuras com a chave do tamanho que fazia os insetos tomarem proporções gigantescas; as aventuras com o rinoceronte Quindim; as conversas com o anjo caído do céu; as peripécias pelas terras da Grécia Antiga com figuras míticas como Hércules e o Minotauro. Cavalguei nas caudas dos cometas com minha boneca Emília.

             As bonecas também podem ser assustadoras, sinistras, ameaçadoras. Na feitiçaria são usadas para representar pessoas trespassadas com alfinetes para causar dores e danos. Assumem a voz dos ventríloquos e os enlouquecem com sentimentos que não ousariam expressar abertamente.

             Ao sul da Cidade do México, onde a morte é sempre vista numa mistura de flores e crânios, há um lugar misterioso chamado Ilha das Bonecas. No meio dos canais e dos nenúfares, uma espécie de santuário mal-assombrado tem bonecas penduradas em paredes, árvores e varais que vão se desgastando com o tempo, perdendo a beleza e a inocência e se transformando em objetos terríveis, lambuzados de sangue e poeira. Conta-se que um antigo morador da ilha ouviu falar que uma jovem havia se afogado no rio. Quando viu uma boneca flutuando, tomou isso como sinal, resgatou o brinquedo para agradar o espírito da menina. Uma boneca só não foi suficiente oferta e milhares se juntaram a ela, num cenário de filme de terror. Há choros e gritos de quem perdeu as filhas naquelas águas.

             E quantas meninas, corpos de bonecas, agarradas ainda a suas bonecas, são vítimas de violência sexual, agredidas dentro de suas casas por pessoas manipuladoras, predadoras, que escolhem a vítima mais tímida, mais quieta e atacam o alvo fácil, a pombinha cálida, com suas garras de abutres abusadores.

             A Casa de Bonecas, peça teatral do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, em meados do século XIX, gerou polêmica e debates no mundo todo. O difícil tema da exclusão das mulheres. O relacionamento entre Nora e o marido Helmer parecia perfeito. Ele a chamava de “cotovia”, “esquilo”, “minha menininha”. Ela era mimada, infantil, uma criança grande, sem responsabilidade. Um dia, no intuito de agradar e ajudar financeiramente o marido, Nora envolve-se numa fraude bancária. O banqueiro a chantageia. O marido, ao descobrir, fica furioso e a julga uma pessoa sem caráter. Depois, arrependido, pede-lhe perdão. Mas a ilusão se rompera: a filha-boneca, a esposa-boneca torna-se uma mulher decepcionada. Abandona o marido e os filhos e vai embora sozinha para compreender a si e ao mundo. Declara que só voltará se acontecer um milagre: a transformação profunda de suas almas para uma verdadeira vida em comum. Partiu em busca da maturidade. Boneca fria.

             E há homens tão solitários que se contentam com a companhia de uma boneca daquelas feitas sob encomenda para o sexo. É a história contada no intrigante filme A Garota Ideal, sob a direção de Craig Gillespie. Lars mora na garagem da casa de seu irmão. Não gosta de sair. Um dia avisa que trará Bianca, sua namorada, para o jantar. Explica que ela não fala inglês, que não anda, que precisa de uma cadeira de rodas. O irmão e a cunhada ficam felizes com a notícia e arrumam o quarto de hóspede. Lars aparece com a namorada e descobrem que ela é uma boneca. Tudo estranho, bizarro, mas muito delicado. Delicado entender como é difícil, às vezes torturante, a sede de amar e ser amado.

             Guardo minhas bonecas em prateleiras iluminadas, em baús chaveados no meu coração. Fui mãe, professora, poeta observada pelo jogo dos olhos azuis de vidro das minhas bonecas.

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