Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 31, 24/06/2015

VASSOURA

                São pesadas as responsabilidades domésticas. Varro todos os dias os cantos da casa. A poeira refletida na luz do sol parece um prisma colorido. Encosto as mãos na vassoura, apoio o queixo, fico equilibrada no cabo, vendo a paisagem da janela. Às vezes tenho vontade de chorar, mas logo passa, afinal a varredura é um serviço de culto, que precisa ser executado com mãos puras. Há que se eliminar toda sujeira do chão, toda contaminação vinda de fora. Os movimentos da vassoura devem abençoar os anjos que protegem o lar e afastar hóspedes invisíveis, que trazem brigas e contendas. É tarefa humilde, de pente-fino, a da limpeza.

                Lembrei-me da parábola da dracma perdida. Uma mulher procura uma moeda perdida. Ela tinha dez moedas, agora são nove. Não se conforma com a perda. A quantia era sua poupança, seu dote. Acende a luz de uma candeia, pega a vassoura e varre diligentemente até achar seu tesouro. Depois, reúne as amigas e vizinhas dizendo que se alegrem com ela, pois achara a moeda.

                Pego um livro da estante, “Heroínas da Bíblia na Arte”. Lá está a gravura de Millais, o ilustrador inglês: uma mulher com um vestido azul cinzento, véu de algodão na cabeça, segurando de um lado a chama de azeite e do outro a vassoura de palha seca. Atrás, um recorte em arco, as nuvens entre folhagens. Quanta alegria em encontrar o perdido e leva-lo à comunhão no amor.

                No sítio, quando éramos crianças, o terreiro era varrido todas as tardes, antes do pôr-do-sol (varrer à noite espanta a felicidade), com uma vassoura semelhante a essa da gravura, de feixes de urzes em flor. Pó abaixado, no lusco-fusco, contávamos as primeiras estrelas. Era comum também colocar a vassoura atrás da porta para que a visita incômoda fosse embora. Acreditávamos que, de madrugada, as bruxas voavam em vassouras. Esse mito tem a ver com viagens astrais, desprendimento do corpo, que fica flutuando como pluma, preso à energia de um fio de prata.

                Melhor retornar a outra realidade. Jânio Quadros, professor, advogado, político, presidente do Brasil pelo curto período de sete meses, entre janeiro e agosto de 61, quando renunciou, teve como símbolo de campanha a vassoura. Prometeu varrer tudo: a corrupção, a bandalheira, o abandono do povo. Seu estilo era desajeitado, óculos pretos e sóbrios e, ao mesmo tempo, exibicionista, dramático, demagógico. Quem era afinal Jânio Quadros? Aquele que propôs revoluções, horizontes novos, progresso, democracia? O artífice dos factoides como proibir maiôs em concursos de miss, rinhas de galo e lança-perfume nos carnavais, declarou numa carta que fora acuado por “forças terríveis” levantando-se contra ele, “forças ocultas”, talvez escondidas no malefício daquela vassoura.

                Amo o poema “Canção do vento e da minha vida”, de Manuel Bandeira. Nele o poeta explica que o vento varria as folhas, os frutos, as flores, as luzes, as músicas, os aromas, os sonhos, as amizades, as mulheres, os afetos todos. Que o vento varria os meses, os sorrisos, o tempo. Que o vento varria tudo e que sua vida ficava cada vez mais cheia de tudo. Percebam que o vento não soprava, o vento varria de forma avassaladora. E, quando o vento varre, passamos a possuir eternamente o que perdemos.

                Emily Dickinson, a poetisa americana, que escreveu sobre a morte, a imortalidade e a natureza, criou imagens animadas como a “aranha que tece golas elisabetanas, de tufos”, “o rato que é esquivo inquilino clandestino” e “a dona de casa que, no crepúsculo, varre o céu com vassouras multicores”. Emily sofria de agorafobia, ou seja, tinha pavor de sair de casa, mas, mesmo reclusa, descobria o êxtase de viver na mera consciência de estar vivendo.

                Varro todos os dias os cantos da minha casa. É assombrosa ocupação.

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