Raquel Naveira

Escritora sul-mato-grossense, nasceu no dia 23 de setembro de 1957. Formada em Direito e em Letras. Mestre em Comunicação e Letras. Tem vários livros publicados: romance, poesia, crônicas e infantis.       

Coluna semanal de Raquel Naveira
Nº 52, 9/3/2016

PÔR DO SOL

                 Nesta marcha para o Oeste, reencontrei o prazer de assistir ao pôr do sol. Fecho as portas, abro as janelas, vou até a varanda e estarreço diante da beleza do pôr do sol (há beleza, mesmo no infortúnio).

                 Lembrei-me do Pequeno Príncipe, personagem de Saint-Éxupery. Era tão melancólica sua vidinha lá no asteroide minúsculo onde morava, que sua única distração era ver a doçura do pôr do sol. Bastava recuar um pouco a cadeira e ele contemplava o crepúsculo todas as vezes que desejava. Um dia, confessou ao piloto, que vira o sol se pôr quarenta e três vezes. Explicou que quando a gente está triste demais, gosta do pôr do sol. O amigo lhe perguntou se ele estava triste assim naquele dia, mas o principezinho não respondeu.

                 Carrego um sol rubro dentro de mim. Constelações e cacos de estrelas também. Algumas delas piscam as pontas e se confundem com vagalumes. Sou crepuscular, mulher da fronteira. Amo o pôr do sol como o Pequeno Príncipe. Hora da saudade, do desejo de sonhar, da vontade de viver e de morrer. Embora sinta o declínio das minhas capacidades físicas e a chegada sorrateira da velhice, o pôr do sol me faz pensar que tudo ficará melhor quando a noite baixar de vez, toda preta.

                 Deus é o artista que pinta o céu sempre de forma diferente. Borrões, pinceladas grandes que brilham enchendo a tela de cintilações. Hoje há um pouco de amarelo, de lilás e de magenta. Cada um desses tons poderiam ser captados pelas lentes de um fotógrafo do cerrado ou por Monet, o criador do impressionismo, das ninfeias, dos jardins com pontes sobre lagos, dos pingos de sol refletidos na água e no horizonte. Fico treinando o olhar, enquanto os raios penetram meu corpo com suas hastes de crisântemos.

                 Escrevi certa vez um poema que começava assim: “Em Madri/ Ninguém sabe como é o pôr do sol daqui”. E brotaram comparações com a imaginária Espanha: como um touro na arena esvaindo em sangue; como as mãos do toureiro apanhando uma rosa atirada na areia pela amada; como o rebelde executado de braços abertos, vidrado de terror, naquele célebre quadro de Goya, “Os fuzilamentos do dia 3 de maio de 1808”; como o leque de uma dançarina de flamenco; como a angústia dos sobreviventes depois da guerra civil, do assassinato do poeta Federico Garcia Lorca numa vala de montanha e do martírio de Guernica. Aqui, o pôr do sol tem garças róseas que pousam em porteiras; pelegos espalhados pelos pastos alaranjados do céu. Aqui o pôr do sol pode ser chamado de “crepúsculo”, de “quiriri”, de “lusco-fusco”. Exige que, mesmo que se acendam ao longe as lâmpadas da cidade e os olhos dos jacarés nos pantanais, peguemos nos armários antigos da memória, tocos de velas que se consumirão em chamas vermelhas e azuis.

                 A viagem para o Oeste foi uma volta para casa, para o meu planeta. Cada pôr do sol é um instante suspenso. Além da noite, eu sei, há novas auroras. Como o Pequeno Príncipe, coloco minha cadeira na varanda e me encharco de pôr do sol.
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